"A maioria pensa com a sensibilidade, eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar." Fernando Pessoa
quinta-feira, 3 de dezembro de 2009
Clube Contadores de Histórias
O Primeiro Natal em Portugal
É véspera de Natal. Mas não para Irina. Para ela só será Natal a 7 de Janeiro, quando as aulas tiverem recomeçado.
A mãe aproveita umas horas extra, na pastelaria, para preparar fornadas de bolos-reis.
O pai, antes de sair, marcou-lhe páginas e páginas de trabalhos de casa. É preciso, para poder acompanhar os colegas,
Folheando o dicionário, a pequena ucraniana procura as palavras portuguesas que há-de escrever em frente das que tão bem conhece.
ОЛiВЕДЬ — lápis
ЗОШИТ — caderno
КИГА — livro
ШКОЛА — escola
Tudo diferente! Até o abecedário... Na escola, os outros fazem pouco dela e chamam-lhe “língua de trapos”. Que quererá isso dizer?
Vai à página 190, logo em seguida à 293. Era de calcular...
Tem, no entanto, orgulho em ser a melhor a matemática. Ninguém a bate em contas. Quando a professora entrega os testes e lhe dá vinte, há sempre um grupinho irritado que, no recreio seguinte, se junta, numa roda, à sua volta, cantarolando:
Irina, Irina, Irina,
Que menina tão fina!
Tem cara cor de sal,
Olhos cor de piscina.
Cabelos cor de margarina.
Ai, doem-te as saudades?
Vai tomar aspirina.
Na Ucrânia deixou tantos amigos...
Evita aqueles olhos escuros que se fixam nela, uns curiosos, outros trocistas, outros indiferentes.
Sente-se como uma extraterrestre. Porque é que os pais a mandaram vir?
Isola-se no recreio, a um canto, tentando desvendar a algaraviada das conversas. Às vezes, o Afonso murmura-lhe ao ouvido um segredo:
— Pareces uma fada!
E foge logo a correr.
Que palavrão será “fada”? Nem vale a pena procurar no dicionário. Algumas palavras que lhe dizem nem sequer lá vêm. A princípio ainda perguntou à mulher da limpeza o que significavam mas ela empurrou-a com a esfregona.
— Ordinária! Estes imigrantes mal sabem falar mas fixam logo a porcaria... Porque não voltam para o sítio de onde vieram?
Com lágrimas nos olhos, Irina vai agora à janela e vê as luzinhas acender e apagar nas árvores despidas. Por trás das paredes deslavadas das velhas casas, decerto se celebra a consoada. Como será?
Doze pratos se punham na mesa de festa no Natal da sua terra. Uma em memória de cada apóstolo.
É Natal em Portugal. Que interessa? A família está dispersa. A mãe a fazer bolos-reis que não vai provar porque para os ortodoxos é tempo de sacrifício e jejum. O pai lá anda, na construção civil. Como mais ninguém queria trabalhar na noite de 24, foi, sozinho, pintar um café que está a ser remodelado, ao fundo da rua. Os dois irmãos mais novos ficaram em Priluki, lá longe, com a avó.
Irina aquece a sopa e arranja uma sandes de queijo. Como pesa o silêncio!
De repente, sente um grito abafado no andar de cima. Algum assalto? Alguém que caiu? Não sentiu passos nem o baque de uma queda...
Com o coração a bater, põe-se a espreitar pelo óculo. Nada!
— Acudam! Acudam!
Mais ninguém se encontra no prédio. As lojas do rés-do-chão estão fechadas, os vizinhos do primeiro andar foram de férias. Por cima, na mansarda, mora uma rapariga nova, gorda, pálida.
Irina abalança-se a subir. A porta encontra-se apenas encostada e a miúda entra, a medo. Já ninguém grita. Um gemido fraco ecoa ao fundo do corredor.
Haverá feridos? Tem horror ao sangue. Por um momento, pensa em voltar para trás. Mas prossegue, pé ante pé, até ao quarto.
Deitada na cama, a moça, que ela conhece de vista, geme, agarrada à barriga enorme. Irina aproxima-se, repara que está alagada em suor.
— Ladrão atacar tu? Estar doente?
Tremendo, a outra responde:
— Chama o 112. O bebé vai nascer.
Que será o 112? Estará ela a delirar? Quase desfalece.
Então Irina precipita-se pela escada abaixo. A rua encontra-se deserta. Não conhece ninguém nas redondezas. Corre até ao café onde o pai está a pintar paredes.
— Pai, pai! — grita ela.
Anton desce do escadote, pousa o rolo, inquieto ao ver a filha naquela aflição.
— Que foi? Aconteceu alguma desgraça?
Mal sabe o que se passa, marca um número no telemóvel, dá a morada, pede urgência. Segue-a em passo apressado. Sobre eles desaba uma chuva gelada. Ficam com os cabelos a escorrer, encharcam os sapatos nas poças que, num instante, se formam.
Chegados ao prédio, o ucraniano galga os degraus dois a dois, entra sozinho no quarto da vizinha. A filha fica à espera.
— Irina, ferve uma panela de água. Traz-me um frasco de álcool, uma tesoura, toalhas.
A miúda obedece, confusa.
— Traz-me roupa lavada, para me mudar!
O pintor despe o fato-macaco, sujo de tinta e de pó, na casa de banho, enfia uma camisa branca, umas calças desbotadas. Esfrega as mãos e a tesoura com álcool.
— Irina, a água já ferve?
De novo no quarto, fala pausadamente com a rapariga, em voz alta. Ouve-se tudo cá fora.
— Força! Coragem! Está quase...
De súbito ouve-se o choro de um bebé.
— Entra, Irina — diz, pouco depois, o pai. — Vem ajudar. Já és crescida.
Entrega-lhe o recém-nascido.
A rapariga, na cama desalinhada, sorri.
— Embrulha-o num xailinho. Está na gaveta do meio.
Irina aconchega aquele corpo tão pequenino e frágil. Embala-o devagarinho, como fazia com as bonecas. Uma minúscula mãozinha aperta então o seu polegar.
O alarme de uma ambulância apita. Pára à entrada do edifício. Duas enfermeiras precipitam-se pela porta dentro.
— Então, viram-se atrapalhados? Um parto faz sempre confusão, principalmente aos homens.
— Sou médico — confessa o ucraniano. — Mas, em Portugal, ando nas obras...
As enfermeiras cruzam um olhar subitamente triste. Examinam a criança.
— O bebé nasceu no dia de Natal. É o nosso Menino Jesus.
A mãe olha para o homem e pergunta:
— Como é que o doutor se chama?
— Anton.
— António? Quer ser o padrinho? Vou pôr-lhe o seu nome.
As enfermeiras levam a rapariga e o bebé para a ambulância.
— Vão dar um passeio até à maternidade. Estão ambos óptimos.
— Manhã nós visitar! — exclama a garota.
Já passa da meia-noite. Pai e filha descem até ao patamar do primeiro andar. Na escada nunca há luz. Felizmente a gente do 112 usa lanternas... Mas, logo que o pessoal da ambulância se afasta, a escuridão instala-se. Às apalpadelas, o pai mete a chave na fechadura. Tropeça num embrulho.
— Que será? — espanta-se ele. — Esta é uma noite de surpresas.
Sobre o tapete de cairo está um embrulho enfeitado com um laçarote cor-de-rosa. Traz um bilhete preso com fita-cola.
Para uma fada loura.
com amizade
A menina abre-o. É um conjunto de canetas de ponta de feltro.
— O Pai Natal português não se esqueceu de ti — ri-se o médico.
— O Afonso é a única pessoa que me trata por fada — replica a Irina, um bocadinho corada.
Corre para o dicionário, passando as páginas até à número 159 e exclama, radiante:
OЗНАКА — fada
Depois, pega numa folha de papel e desenha, a amarelo, uma estrela a brilhar, a brilhar, a brilhar.
Luísa Ducla Soares
Há sempre uma estrela no Natal
Porto, Civilização Editora, 2006
segunda-feira, 30 de novembro de 2009
Clube Contadores de Histórias
O bolo-rei
O bolo-rei tomava-se muito a sério. Não havia discussão: ele era o rei dos bolos.
Como tal, quando lhe caiu uma passa da coroa, ordenou ao bolo-inglês:
— Traz-me essa passa de volta.
O bolo-inglês fez-se desentendido e respondeu:
— Sorry! I don’t understand...
O que queria dizer, na língua dele, que pedia desculpa, mas não tinha entendido.
Então, o bolo-rei virou-se para um bolo de natas e deu a mesma ordem. Queria, outra vez, a passa a ornamentar-lhe a coroa.
O bolo de natas tinha uma fala atrapalhada, por causa do excesso de natas.
— Flá, plefe, pflu, pfló...
Não se percebia nada.
O bolo-rei, muito irritado, ordenou o mesmo ao bolo de amêndoa, que lhe respondeu:
— Também a mim me caiu uma amêndoa torrada e não me queixo.
O bolo-rei, cada vez mais exasperado, deu a mesma ordem a um pudim de gelatina, mas o pudim de gelatina era muito frágil, muito nervoso e só tremeu, tremeu, incapaz de dizer ou fazer o que quer que fosse.
— São uns rebeldes estes meus súbditos — concluiu, numa grande exaltação, o bolo-rei. — Condeno-os a que sejam todos cortados às fatias.
E assim aconteceu. Mas nem o bolo-rei escapou.
António torrado
www.historiadodia.pt
terça-feira, 24 de novembro de 2009
Conto Popular
O conto é um tipo de narrativa que se opõe, pela extensão, quer à novela, quer ao romance. De facto, é sempre uma narrativa pouco extensa e a sua brevidade tem implicações estruturais: reduzido número de personagens; concentração do espaço e do tempo, acção simples e decorrendo de forma mais ou menos linear.
Para Alexandre Parafita, os contos populares fazem parte de um universo cultural que tem como suporte a tradição oral de um povo, não sendo de fácil definição porque se confunde frequentemente com outros conceitos, como por exemplo a lenda e o mito. Mesmo assim arrisca dizer que um conto popular é um texto narrativo, curto, que procura deleitar, entreter ou educar o ouvinte, e que é geralmente ficcionado ou então de conteúdo presumivelmente verídico sem que isso constitua factor relevante na avaliação do acto narrativo em si mesmo. É um texto que tem uma origem anónima, faz parte da tradição oral de uma comunidade e reflecte os mais variados sentimentos da alma de um povo, os seus hábitos, usos, costumes, vícios e índole.
Embora o conto seja hoje uma forma literária reconhecida e utilizada por inúmeros escritores, a sua origem é muito mais humilde. Na verdade, nasceu entre o povo anónimo. Começou por ser um relato simples e despretensioso de situações imaginárias, destinado a ocupar os momentos de lazer. Um contador de histórias narra a um auditório reduzido e familiar um episódio considerado interessante. Os constrangimentos de tempo, a simplicidade da assembleia e as limitações da memória impõem que a "história" seja curta. Essas mesmas circunstâncias determinam, como já vimos, a limitação do número de personagens, a sua caracterização vaga e estereotipada, a redução e imprecisão das referências espaciais e temporais, bem como a simplificação da acção.
Dada a sua origem popular, o conto de que falamos aqui não tem propriamente um autor, entendido como um ser humano determinado, ainda que desconhecido. Na realidade ele constitui uma criação colectiva, dado que cada "contador" lhe introduz inevitavelmente pequenas alterações ("Quem conta um conto, acrescenta um ponto.").
Por outro lado, é bom ter consciência de que os contos populares com que hoje nos defrontamos são diferentes daqueles que, durante séculos, foram transmitidos oralmente de geração em geração. Em primeiro lugar, porque o seu registo por escrito implicou necessariamente alguma re-elaboração. Em segundo lugar, porque no acto de narração oral o código linguístico era acompanhado por outros códigos, variáveis de contador para contador e irreproduzíveis na escrita (a entoação, a ênfase, os movimentos corporais, a mímica...).
Também não podemos esquecer que o auditório estava fisicamente presente e condicionava o acto de narração, fazendo comentários ou perguntas e restringindo, com a sua censura implícita, a imaginação criadora do contador. É essa censura latente que ajuda a compreender a permanência dos elementos essenciais, independentemente do tempo e do espaço.
O interesse dos intelectuais pelo conto popular surgiu no século XVII, quando, em 1697, Charles Perraut publicou a primeira recolha de contos populares franceses, que incluía histórias tão conhecidas como "A Gata Borralheira", "O Capuchinho Vermelho" e "O Gato das Botas". Esse interesse pela literatura popular acentuou-se no século XIX, com os trabalhos dos irmãos Grimm, na Alemanha, e Hans Christian Andersen, na Dinamarca. Em Portugal destacaram-se nessa tarefa investigadores como Teófilo Braga, Adolfo Coelho, Leite Vasconcelos e Consiglieri Pedroso. O próprio Almeida Garrett recolheu no seu Romanceiro numerosas narrativas em verso, que são afinal parentes próximos do conto popular.
Estrutura
Fruto da sua origem oral, estes contos têm quase sempre uma estrutura muito simples e fixa. A própria fórmula inicial ("Era uma vez...") e final ("...e foram felizes para sempre.") revelam isso. Essa estrutura pode ser traduzida da seguinte forma:
Ordem existente - situação inicial;
Ordem perturbada - a situação de equilíbrio inicial é destruída, o que dá origem a uma série de peripécias que só se interrompem com o aparecimento de uma força rectificadora;
Ordem restabelecida.
Personagens
A caracterização das personagens é sumária e estereotipada: os heróis concentram em si os traços positivos, enquanto os vilões evidenciam todos os aspectos negativos da personalidade humana. Dessa maneira personifica-se o bem e o mal e manifesta-se insistentemente a vitória do primeiro sobre o segundo.
A caracterização indirecta prevalece sobre a directa, visto que é sobretudo pelas suas acções que as personagens revelam o seu carácter.
Tempo e espaço
A fórmula inicial ("Era uma vez..." ou outra equivalente) remete para o passado e, desse modo, funciona como um sinal de que se vai passar do mundo real para um mundo irreal, o mundo da fantasia, onde tudo é possível. Esse mergulho no imaginário termina com a fórmula final: "...e viveram felizes para sempre."
Ao longo do conto as indicações de natureza temporal são sempre limitadas e vagas, não permitindo determinar com rigor a duração da acção ou a localização num contexto histórico preciso. O mesmo acontece relativamente ao espaço: um palácio, uma casa, uma fonte, uma floresta...
Na verdade, as vagas referências espácio-temporais aparecem apenas porque são uma exigência da narrativa, visto que nada acontece fora do tempo e do espaço. Não é o onde nem o quando que interessa, mas sim o que acontece, a acção. As próprias personagens são um mero suporte da acção, daí a sua caracterização estereotipada.
A conjugação dessas características (personagens estereotipadas e espaço e tempo indeterminados) concede às histórias um carácter atemporal e universal, que permite a sua reactualização permanente: é algo que poderia acontecer em qualquer tempo e em qualquer lugar.
Simbologia
Os contos tradicionais estão carregados de simbologia: dizem mais do que parecem dizer. A manifestação mais evidente é a referência sistemática ao número três, símbolo da perfeição desde tempos imemoriais. Mas há mais... A rosa aparece como símbolo do amor puro e total. O beijo desperta e faz renascer. A heroína é frequentemente a mais nova (e por isso a mais pura e inocente) e afirma-se por oposição às irmãs mais velhas e mesmo aos pais. O herói quase sempre tem que enfrentar uma série de provas antes de alcançar o objecto - símbolo do amadurecimento que fará dele um homem. Outras vezes sai da casa paterna em busca da autonomia.
Funções (importância) do conto
Em maior ou menor grau, o conto popular tinha as seguintes funções:
preencher os tempos de lazer;
propor aos ouvintes modelos de comportamento;
transmitir os valores e concepções do mundo próprios daquela sociedade.
Em síntese, podemos dizer que os contos tinham (têm) uma função de entretenimento e uma função educativa. Por um lado, constituíam uma das formas de ocupar os tempos livres, geralmente os serões, reforçando os laços de convivialidade entre os membros da comunidade e despertando a imaginação dos assistentes; por meio deles era possível compensar a dureza e a monotonia da vida quotidiana, fugindo para mundos distantes e vivendo papéis e situações empolgantes. Por outro, concediam aos mais velhos um instrumento privilegiado para levarem os mais novos a interiorizarem valores e comportamentos considerados aceitáveis.
Classificação dos contos populares
São muitos os temas tratados nos contos populares, daí que sejam possíveis várias classificações. Por comodidade podemos reduzi-los a cinco tipos:
maravilhosos ou de encantamento;
jocosos e divertidos;
de fórmula;
de exemplo;
religiosos ou morais;
de animais;
etiológicos (relativos à fundação de um local).
http://www.cm-mirandela.pt/index.php?oid=3936
Objectivos Gerais para o Teste 8º ano (2º)
Grupo I
- Reconhecer e compreender textos da tradição oral;
- Conhecer as principais características do conto tradicional:
- estrutura; linguagem e estilo; funções.
Grupo II (Conhecimento Explícito da Língua)
- Identificar as classes e subclasses de palavras*:
- Classificar as palavras quanto à flexão;
- Colocar no plural os nomes e adjectivos compostos;
- Classificar sintacticamente frases.
- Conhecer os registos de língua;
- Identificar o processo de formação de palavras: derivação (prefixação e sufixação) e composição (aglutinação e justaposição)
* Verbos (regulares/Irregulares; Copulativos, Transitivos e Intransitivos; Conjugações - 1ª; 2ª; 3ª; Modos: Indicativo; Conjuntivo; Condicional; Imperativo; Infinitivo));
- Classificar as palavras quanto ao número de sílabas e quanto à posição da sílaba tónica;
- Identificar os tipos e formas de frase;
Grupo III
- Produção de um texto relacionado com os temas abordados.
domingo, 25 de outubro de 2009
Objectivos Gerais para o Teste 8º ano
Grupo I
- Identificar e compreender um texto jornalístico;
- Identificar e compreender um texto em Banda desenhada;
- Conhecer as características e a estrutura de uma notícia;
- Conhecer a estrutura da Banda desenhada.
Grupo II (Conhecimento Explícito da Língua)
- Identificar as classes e subclasses de palavras*:
- Classificar as palavras quanto à flexão;
- Colocar no plural os nomes compostos;
- Classificar sintacticamente frases.
- Conhecer os registos de língua;
- Identificar neologismos;
- Identificar o processo de formação de palavras: derivação (prefixação e sufixação) e composição (aglutinação e justaposição)
* Verbos (regulares/Irregulares; Copulativos, Transitivos e Intransitivos; Conjugações - 1ª; 2ª; 3ª; Modos: Indicativo; Conjuntivo; Condicional; Imperativo; Infinitivo));
- Classificar as palavras quanto ao número de sílabas e quanto à posição da sílaba tónica;
- Identificar os tipos de frase;
- Indicar o campo lexical de uma palavra ou expressão.
Grupo III
- Produção de um texto relacionado com os temas abordados.
segunda-feira, 5 de outubro de 2009
Clube Contadores de Histórias
As sextas-feiras de Nana
As noites de sexta-feira em casa da avó Nana começam logo de manhã cedo na
cozinha. Nós comemos pão com doce de pêssego, que é o nosso preferido.
Nana bebe chá, que está muito quente, e sopra para dentro da taça antiga de porcelana chinesa, fazendo pequenas ondas.
— Hoje não tenho escola! — digo a cantar. — Que sorte que eu tenho!
— Hoje não tens escola! — responde. — Que sorte que EU tenho!
— Agora fala-me da noite de hoje – peço.
— Vem a família toda! Vem para o Sabbath e nós temos muito que fazer!
Nana apressa-se a fazer a cama e a limpar os quartos. Eu estou encarregada de alisar as almofadas.
Nana lava as porcelanas chinesas e passa a ferro os vincos da renda da toalha de mesa.
Eu dobro guardanapos com bordos de renda.
Nana inspecciona se faltam botões no seu vestido de Sabbath, azul marinho, de gola branca e punhos brancos também.
— É altura de fazer a tarte? — pergunto.
— Daqui a pouco, Jennie.
Eu puxo e volto a puxar o lustro a dois candelabros.
— Já é altura agora?
— É – diz Nana, estendendo a massa, e eu deito açúcar nas maçãs para a tarte. Em seguida, ela entrança os challah (Challah – Pão tradicional para o Sabbath e outras festas judaicas.) e mete-os no forno.
Ao meio-dia comemos sandes no parque, perto do rio. Bebemos também uma chávena de cacau.
O céu está cinzento e o vento sopra do rio, levantando-nos o cabelo, e nós dançamos para nos mantermos quentes, com os ponchos vestidos e as luvas calçadas.
Depois, andamos pela cidade de mãos dadas, à procura de flores roxas, que são as nossas preferidas.
— Oh, obrigada! — diz Nana.
— Obrigada — repito, saltitando pelo passeio com as flores.
Quando regressamos a casa de Nana, pomo-las numa jarra alta com água.
— É altura de nos vestirmos? — pergunto.
— Daqui a pouco, Jennie.
Mais para o fim da tarde, a casa está toda esfregada, a sopa de cevada já ferve e os challah estão a arrefecer. O frango aloura no forno e as batatas também.
— Agora já é altura?
— É — diz Nana.
Nós vestimos os nossos vestidos, ambos azul-marinho. Os sapatos também são azuis. Nana põe batom nos lábios, olhando-se ao espelho.
Pomos a mesa, contamos os talheres de prata e as taças da sopa, os copos que cintilam.
Nana pica o frango para ver se está tenro.
Lá fora escurece.
— Nana, olha! Neve!
A campainha da porta toca e a família precipita-se para dentro, abraçando Nana.
Também me abraçam a mim, pincipalmente os meus pais, e eu faço cócegas ao meu irmão bebé, o Lewis, metido no fatinho de bebé.
A campainha toca de novo e entra mais família de rompante. Os tios, as tias e os primos. Toda a gente fala ao mesmo tempo, tiram os sapatos aos pontapés, atiram os
sobretudos para cima das cadeiras.
No forno, a minha tarte já começa a cheirar.
— Já é altura? — pergunto.
— Agora é — diz Nana, e finalmente chega o melhor momento da noite.
Nana acende as velas e os nossos vestidos tocam um no outro; ela murmura orações de Sabbath e todos ficam em silêncio. Até o Lewis.
Daí a pouco, estamos a mastigar os challah e a passar taças de sopa, e todos falam ao mesmo tempo sentados à comprida mesa de jantar.
Lá fora, o vento uiva. A neve levanta-se em lindos rodopios brancos.
Mas aqui dentro as velas tremulam. Um cântico de Sabbath está no ar. É altura da tarte, e nós estamos todos juntos na sexta-feira de Nana.
Amy Hest
The Friday nights of Nana
Cambridge, Candlewick Press, 2001
Tradução e adaptação
quarta-feira, 30 de setembro de 2009
Clube Contadores de Histórias
Eu, sozinho, no Fim do Mundo (continuação)
Quando chegou o Outono, Constantino Brilho tinha terminado a sua estalagem, que ostentava pórticos, torres e espigões. Uma a uma, as folhas caíram das árvores e despenharam-se pela borda do mundo. Gostava de as ver, a rodopiar. Caíam aos meus pés, vindas do céu.
Quando as cores estavam mesmo brilhantes, o Alberto, o Júlio e a Margarida chegaram da cidade. Corremos a estalagem de uma ponta à outra, brincámos com os elevadores, e eles pediram que lhes servissem peru e pastilha elástica no quarto.
Alugámos quatro planadores e atirámo-nos dos rochedos no Fim do Mundo. Gritámos quando sentimos o sangue afluir todo aos nossos pés.
— Nada de lágrimas! — avisou o Sr. Brilho, que estava em terra firme. — Nada de lamúrias! É tempo de divertimento! Senhores e Senhoras, coloquem-se em fila. Saltem hoje e esqueçam o amanhã!
No Inverno, a neve caiu nas árvores, nos rochedos e nos túmulos. Observei os flocos a caírem em silêncio sobre a terra. Um dia, apareceu um trenó, com o Alberto, o Júlio e a Margarida. Cuspimos nas mãos, apertámo-las e piscámos o olho.
Divertimo-nos imenso. Vimos espectáculos de sombras de marionetas à noite, enquanto o vento soprava. Alugámos patins e fizemos figuras de oito nas Cataratas Pataratas e figuras de nove no Lago Conta-Gotas. As pessoas gritavam, enquanto se balançavam nos pinheiros. Os hóspedes patinavam e esquiavam em massa, descendo as encostas aos saltos e deslizando por longas rampas.
— Isto é ou não divertido? — perguntava o Sr. Brilho. — Divertimento a sério. Sentem-se sozinhos, Senhores e Senhoras? Na Estalagem do Brilho, nunca!
O Júlio, o Alberto, e a Margarida voltaram na Primavera. Não se ouvia o vento soprar através dos pinheiros eriçados. O barulho das festas era demasiado alto na floresta. Homens de bigode ensinavam o fox-trot a duquesas e a herdeiras de lavandarias vestidas de seda. Os monstros já não se mostravam quando os relâmpagos surgiam com as chuvas da Primavera. Tinham medo do barulho e das máquinas. O Júlio, o Alberto, a Margarida e eu corríamos pelos caminhos através das florestas, caminhos agora cheios de lixo. Também jogávamos às escondidas.
A cabana onde eu vivia estava rodeada de carrinhos. Já não conseguia encontrar ossos de dinossauros ou moedas de oiro antigas. Os pavilhões e as escadas rolantes tinham-nos coberto.
No Verão, as multidões eram imensas e a estalagem estava aberta para casais em lua-de-mel que vinham em busca do sossego e dos pores do sol de quatro horas. Só que estes mal se viam devido à bruma que cobria o paredão e provinha das luzes artificiais das arcadas.
— Quero ver mais divertimentos! — gritava o Sr. Brilho ao megafone, pendurado num prego que parecia vindo do céu. — Nada de silêncios solenes no Fim do Mundo! Só gargalhadas! E saltos! Senhoras e senhores, recomendo-lhes vivamente as vertigens!
Não dormia há sete dias. Havia sempre alguma coisa para me distrair. Tentei falar com os meus amigos:
— Sabem, estive a pensar…
— Não há tempo para pensar! — interrompeu o Sr. Brilho. — É tempo para se divertirem! Vejam, minha gente, o Fim do Mundo! Que vista magnífica, sublime e resplandecente! Vou construir tudo aquilo que quiserem! Deixem tudo o que estão a fazer! Não há tempo para tristezas ou ideias! Vamos DIVERTIR-NOS! DIVERTIR-NOS sem PARAR!
A Margarida estava toda suada.
— Anda lá! — insistiu comigo.
— Aqui vimos nós! — gritava o Júlio.
— Aqui vamos nós! — ria-se o Alberto, rangendo os dentes e rasgando a camisa nas tropelias.
— Penso que é tempo de ir também — disse para comigo.
Tirei o chapéu de papel da cabeça e as luvas das mãos. Enrolei-as e dei-as ao Júlio.
Depois disse-lhe:
— Tenho de ir embora. Sinto falta do vento.
E fui embora.
Agora vivo sozinho no Topo do Mundo. É uma montanha muito alta. Consigo ver a borda da montanha. Os dias passam-se devagar e bem. Como biscoitos salgados e cartilagens. Limpo as rochas e encontro fósseis. Procuro tesouros em velhos mapas de impérios decadentes. Sento-me no alpendre da minha cabana e escrevo cartas aos meus amigos na cidade, Alberto, Júlio e Margarida. Um dia destes vou visitá-los.
Às tardes, escuto o rumor do vento por entre os ramos dos pinheiros eriçados.
Sinto a suavidade da solidão a cair.
Por ora, sinto-me bem, sozinho, aqui no Topo do Mundo.
FIM
M. T. Anderson; Kevin Hawkes
Me, All Alone, at the End of the World
London, Walker Books, 2007
(Tradução e adaptação)
Quando chegou o Outono, Constantino Brilho tinha terminado a sua estalagem, que ostentava pórticos, torres e espigões. Uma a uma, as folhas caíram das árvores e despenharam-se pela borda do mundo. Gostava de as ver, a rodopiar. Caíam aos meus pés, vindas do céu.
Quando as cores estavam mesmo brilhantes, o Alberto, o Júlio e a Margarida chegaram da cidade. Corremos a estalagem de uma ponta à outra, brincámos com os elevadores, e eles pediram que lhes servissem peru e pastilha elástica no quarto.
Alugámos quatro planadores e atirámo-nos dos rochedos no Fim do Mundo. Gritámos quando sentimos o sangue afluir todo aos nossos pés.
— Nada de lágrimas! — avisou o Sr. Brilho, que estava em terra firme. — Nada de lamúrias! É tempo de divertimento! Senhores e Senhoras, coloquem-se em fila. Saltem hoje e esqueçam o amanhã!
No Inverno, a neve caiu nas árvores, nos rochedos e nos túmulos. Observei os flocos a caírem em silêncio sobre a terra. Um dia, apareceu um trenó, com o Alberto, o Júlio e a Margarida. Cuspimos nas mãos, apertámo-las e piscámos o olho.
Divertimo-nos imenso. Vimos espectáculos de sombras de marionetas à noite, enquanto o vento soprava. Alugámos patins e fizemos figuras de oito nas Cataratas Pataratas e figuras de nove no Lago Conta-Gotas. As pessoas gritavam, enquanto se balançavam nos pinheiros. Os hóspedes patinavam e esquiavam em massa, descendo as encostas aos saltos e deslizando por longas rampas.
— Isto é ou não divertido? — perguntava o Sr. Brilho. — Divertimento a sério. Sentem-se sozinhos, Senhores e Senhoras? Na Estalagem do Brilho, nunca!
O Júlio, o Alberto, e a Margarida voltaram na Primavera. Não se ouvia o vento soprar através dos pinheiros eriçados. O barulho das festas era demasiado alto na floresta. Homens de bigode ensinavam o fox-trot a duquesas e a herdeiras de lavandarias vestidas de seda. Os monstros já não se mostravam quando os relâmpagos surgiam com as chuvas da Primavera. Tinham medo do barulho e das máquinas. O Júlio, o Alberto, a Margarida e eu corríamos pelos caminhos através das florestas, caminhos agora cheios de lixo. Também jogávamos às escondidas.
A cabana onde eu vivia estava rodeada de carrinhos. Já não conseguia encontrar ossos de dinossauros ou moedas de oiro antigas. Os pavilhões e as escadas rolantes tinham-nos coberto.
No Verão, as multidões eram imensas e a estalagem estava aberta para casais em lua-de-mel que vinham em busca do sossego e dos pores do sol de quatro horas. Só que estes mal se viam devido à bruma que cobria o paredão e provinha das luzes artificiais das arcadas.
— Quero ver mais divertimentos! — gritava o Sr. Brilho ao megafone, pendurado num prego que parecia vindo do céu. — Nada de silêncios solenes no Fim do Mundo! Só gargalhadas! E saltos! Senhoras e senhores, recomendo-lhes vivamente as vertigens!
Não dormia há sete dias. Havia sempre alguma coisa para me distrair. Tentei falar com os meus amigos:
— Sabem, estive a pensar…
— Não há tempo para pensar! — interrompeu o Sr. Brilho. — É tempo para se divertirem! Vejam, minha gente, o Fim do Mundo! Que vista magnífica, sublime e resplandecente! Vou construir tudo aquilo que quiserem! Deixem tudo o que estão a fazer! Não há tempo para tristezas ou ideias! Vamos DIVERTIR-NOS! DIVERTIR-NOS sem PARAR!
A Margarida estava toda suada.
— Anda lá! — insistiu comigo.
— Aqui vimos nós! — gritava o Júlio.
— Aqui vamos nós! — ria-se o Alberto, rangendo os dentes e rasgando a camisa nas tropelias.
— Penso que é tempo de ir também — disse para comigo.
Tirei o chapéu de papel da cabeça e as luvas das mãos. Enrolei-as e dei-as ao Júlio.
Depois disse-lhe:
— Tenho de ir embora. Sinto falta do vento.
E fui embora.
Agora vivo sozinho no Topo do Mundo. É uma montanha muito alta. Consigo ver a borda da montanha. Os dias passam-se devagar e bem. Como biscoitos salgados e cartilagens. Limpo as rochas e encontro fósseis. Procuro tesouros em velhos mapas de impérios decadentes. Sento-me no alpendre da minha cabana e escrevo cartas aos meus amigos na cidade, Alberto, Júlio e Margarida. Um dia destes vou visitá-los.
Às tardes, escuto o rumor do vento por entre os ramos dos pinheiros eriçados.
Sinto a suavidade da solidão a cair.
Por ora, sinto-me bem, sozinho, aqui no Topo do Mundo.
FIM
M. T. Anderson; Kevin Hawkes
Me, All Alone, at the End of the World
London, Walker Books, 2007
(Tradução e adaptação)
quinta-feira, 17 de setembro de 2009
Clube Contadores de Histórias
Eu, sozinho, no Fim do Mundo
Eu vivia sozinho no Fim do Mundo.
Os dias decorriam devagar e bem. Procurava tesouros em velhos mapas de impérios decadentes. Limpava rochas e encontrava fósseis. Reconstituía o esqueleto de monstros enormes com cordel. Jogava à bola até cair de cansaço. Sentava-me e lia. Gostava de ouvir o vento soprar através dos pinheiros eriçados, cujos ramos ondulavam no azul do céu. Comia biscoitos salgados e cartilagens. Ao sol-pôr, tocava melodias para a minha mula ouvir.
Em noites de tempestade, gostava de ficar na minha cabana. Aconchegava-me junto ao fogão e ouvia a chuva e a trovoada. Via os animais de longas caudas, cinco patas, ou bocas beijoqueiras, enfrentarem o trovão. Também nunca tive medo. Adormecia ao som dos seus grunhidos, que mais pareciam barulhos de canalização. Sabia que, de manhã, não haveria vestígios da chuva, excepto um pequeno orvalho nas árvores que ficavam junto dos rochedos desolados. Sentia-me feliz, sozinho, no Fim do Mundo.
Até um dia. Nesse dia, estava eu sentado de cabeça para baixo para que o meu cabelo ficasse completamente de pé, quando vi um homem estranho. Tinha pernas altas, um chapéu de aba larga e uma barba circular. Os seus óculos reflectiam as nuvens.
Montou um cavalete. Tirou um pincel da bota. Pintou o céu e o pinheiro mais solitário. E disse, numa voz que parecia a lã de um carneiro:
— Chamo-me Constantino Brilho e sou visionário profissional.
Olhou-me de alto a baixo e continuou:
— Rapaz, o que fazes o dia inteiro no Fim do Mundo?
— Muitas coisas — respondi.
E contei-lhe dos assobios, do vento e dos pinheiros.
— Só isso? — perguntou, com um ar aborrecido. — Não te divertes? Não tens amigos?
Olhei para os meus pés. Dantes achava que o que fazia era divertido. Agora já não tinha a certeza.
— Penso que as coisas vão mudar bastante por estes lados — disse o Sr. Brilho.
Por cima da pintura do rochedo e do pinheiro solitário, escreveu as palavras: CONSTANTINO BRILHO, VIAGENS MÁGICAS AO FIM DO MUNDO. DIVERTIMENTO GARANTIDO!
Uma semana mais tarde, estava eu a pescar peixes que voavam sobre as cataratas, quando ouvi o ruído de máquinas grandes e homens a darem ordens. Estavam a pavimentar uma clareira. Estavam a abrir valas. E o Sr. Brilho guiava uma visita.
— Aqui — anunciava ele — é o Fim do Mundo. Este é o rochedo. Este é um rapaz local com a sua mula. Vejam como nos olham com um olhar sonhador. E aqui está o local da futura Estalagem do Fim do Mundo.
Fiquei em estado de choque. Tinha-se juntado uma pequena multidão composta por pais e filhos, que me olhavam com curiosidade e fitavam o rochedo embasbacados.
Nem queria acreditar que ele tinha aplanado o terreno.
— Sr. Brilho! — chamei. — Sr. Constantino Brilho!
Apontei para as lajes.
— O que está a fazer? O que fez?
— Trouxe-te uns amigos. Se lhes mostrares a paisagem, dou-te uma moeda de ouro.
— A paisagem? Mas eu vivo numa cabana sozinho. Não quero amigos e não preciso de…
Foi então que olhei para os miúdos que o rodeavam. Sorriam e eram simpáticos. Estenderam as mãos. Um chamava-se Alberto, outro Júlio, e a rapariga chamava-se Margarida. Queriam gostar de mim. E eu queria gostar deles. Sorri.
— Bem — comecei — na realidade…
O Sr. Brilho acenou, encorajador. Perguntei aos miúdos:
— O que querem que vos mostre?
— O que fazes por estas bandas?
Pensei no que fazia: entretinha-me com fósseis, pores do sol, assobios, ouvia os ramos, observava os pinheiros.
Tentei pensar em algo que fosse excitante.
— Bem, se cuspirem no topo da terra, a cuspidela nunca mais pára de dar voltas.
— Isso é o máximo! — exclamaram os miúdos.
Passámos o dia na floresta junto aos rochedos. Cuspimos e batemos palmas. Mostrei-lhes os fósseis. Mostrei-lhes os caminhos. Mostrei-lhes as árvores e as pegadas dos animais rastejantes.
Quando chegou a altura de regressarem à cidade, disseram:
— Não queremos ir embora. Voltaremos no Outono à Estalagem do Fim do Mundo.
continua…
Eu vivia sozinho no Fim do Mundo.
Os dias decorriam devagar e bem. Procurava tesouros em velhos mapas de impérios decadentes. Limpava rochas e encontrava fósseis. Reconstituía o esqueleto de monstros enormes com cordel. Jogava à bola até cair de cansaço. Sentava-me e lia. Gostava de ouvir o vento soprar através dos pinheiros eriçados, cujos ramos ondulavam no azul do céu. Comia biscoitos salgados e cartilagens. Ao sol-pôr, tocava melodias para a minha mula ouvir.
Em noites de tempestade, gostava de ficar na minha cabana. Aconchegava-me junto ao fogão e ouvia a chuva e a trovoada. Via os animais de longas caudas, cinco patas, ou bocas beijoqueiras, enfrentarem o trovão. Também nunca tive medo. Adormecia ao som dos seus grunhidos, que mais pareciam barulhos de canalização. Sabia que, de manhã, não haveria vestígios da chuva, excepto um pequeno orvalho nas árvores que ficavam junto dos rochedos desolados. Sentia-me feliz, sozinho, no Fim do Mundo.
Até um dia. Nesse dia, estava eu sentado de cabeça para baixo para que o meu cabelo ficasse completamente de pé, quando vi um homem estranho. Tinha pernas altas, um chapéu de aba larga e uma barba circular. Os seus óculos reflectiam as nuvens.
Montou um cavalete. Tirou um pincel da bota. Pintou o céu e o pinheiro mais solitário. E disse, numa voz que parecia a lã de um carneiro:
— Chamo-me Constantino Brilho e sou visionário profissional.
Olhou-me de alto a baixo e continuou:
— Rapaz, o que fazes o dia inteiro no Fim do Mundo?
— Muitas coisas — respondi.
E contei-lhe dos assobios, do vento e dos pinheiros.
— Só isso? — perguntou, com um ar aborrecido. — Não te divertes? Não tens amigos?
Olhei para os meus pés. Dantes achava que o que fazia era divertido. Agora já não tinha a certeza.
— Penso que as coisas vão mudar bastante por estes lados — disse o Sr. Brilho.
Por cima da pintura do rochedo e do pinheiro solitário, escreveu as palavras: CONSTANTINO BRILHO, VIAGENS MÁGICAS AO FIM DO MUNDO. DIVERTIMENTO GARANTIDO!
Uma semana mais tarde, estava eu a pescar peixes que voavam sobre as cataratas, quando ouvi o ruído de máquinas grandes e homens a darem ordens. Estavam a pavimentar uma clareira. Estavam a abrir valas. E o Sr. Brilho guiava uma visita.
— Aqui — anunciava ele — é o Fim do Mundo. Este é o rochedo. Este é um rapaz local com a sua mula. Vejam como nos olham com um olhar sonhador. E aqui está o local da futura Estalagem do Fim do Mundo.
Fiquei em estado de choque. Tinha-se juntado uma pequena multidão composta por pais e filhos, que me olhavam com curiosidade e fitavam o rochedo embasbacados.
Nem queria acreditar que ele tinha aplanado o terreno.
— Sr. Brilho! — chamei. — Sr. Constantino Brilho!
Apontei para as lajes.
— O que está a fazer? O que fez?
— Trouxe-te uns amigos. Se lhes mostrares a paisagem, dou-te uma moeda de ouro.
— A paisagem? Mas eu vivo numa cabana sozinho. Não quero amigos e não preciso de…
Foi então que olhei para os miúdos que o rodeavam. Sorriam e eram simpáticos. Estenderam as mãos. Um chamava-se Alberto, outro Júlio, e a rapariga chamava-se Margarida. Queriam gostar de mim. E eu queria gostar deles. Sorri.
— Bem — comecei — na realidade…
O Sr. Brilho acenou, encorajador. Perguntei aos miúdos:
— O que querem que vos mostre?
— O que fazes por estas bandas?
Pensei no que fazia: entretinha-me com fósseis, pores do sol, assobios, ouvia os ramos, observava os pinheiros.
Tentei pensar em algo que fosse excitante.
— Bem, se cuspirem no topo da terra, a cuspidela nunca mais pára de dar voltas.
— Isso é o máximo! — exclamaram os miúdos.
Passámos o dia na floresta junto aos rochedos. Cuspimos e batemos palmas. Mostrei-lhes os fósseis. Mostrei-lhes os caminhos. Mostrei-lhes as árvores e as pegadas dos animais rastejantes.
Quando chegou a altura de regressarem à cidade, disseram:
— Não queremos ir embora. Voltaremos no Outono à Estalagem do Fim do Mundo.
continua…
domingo, 31 de maio de 2009
Objectivos para o último teste do ano lectivo 2008/2009 - 5º ano -
Grupo I
- Interpretar um texto Narrativo;
- Identificar recursos expressivos: comparação, enumeração,onomatopeia, aliteração, repetição e personificação.
- Conhecer as categorias da narrativa.
Grupo II
Funcionamento da Língua:
- Identificar as classes e subclasses de palavras:nomes, verbos*, adjectivos, determinantes, pronomes, interjeições;
- Classificar as palavras quanto à flexão;
- Classificar sintacticamente frases.
- Identificar os tipos de discurso e transformar discurso directo em indirecto;
- Identificar a relação gráfica e fonética entre palavras (homónimas; homófonas; homógrafas; parónimas)
- Identificar a relação semântica entre palavras (sinónimos e antónimos)
- Identificar o processo de formação de palavras: derivação (prefixação e sufixação) e composição (aglutinação e justaposição)
* Verbos (regulares/Irregulares; Transitivos e Intransitivos; Conjugações - 1ª; 2ª; 3ª; Modos: Indicativo; Conjuntivo; Condicional; Imperativo; Infinitivo));
- Classificar as palavras quanto ao número de sílabas e quanto à posição da sílaba tónica;
- Identificar os tipos de frase;
- Indicar o campo lexical de uma palavra ou expressão.
Grupo III
- Produção de um texto relacionado com os temas abordados.
segunda-feira, 4 de maio de 2009
Objectivos para o Teste de Avaliação Sumativa 5º ano
Grupo I
- Interpretar um texto Narrativo;
- Identificar recursos expressivos: comparação, enumeração,onomatopeia, repetição e personificação.
- Conhecer as categorias da narrativa.
Grupo II
Funcionamento da Língua:
- Identificar as classes e subclasses de palavras:nomes, verbos*, adjectivos, determinantes, pronomes, interjeições;
- Classificar as palavras quanto à flexão;
- Classificar sintacticamente frases.
- Identificar os tipos de discurso e transformar discurso directo em indirecto;
- Identificar a relação gráfica e fonética entre palavras (homónimas; homófonas; homógrafas; parónimas)
- Identificar a relação semântica entre palavras (sinónimos e antónimos)
- Identificar o processo de formação de palavras: derivadas por prefixação; sufixação; prefixação e sufixação.
* Verbos (regulares/Irregulares; Transitivos e Intransitivos; Conjugações - 1ª; 2ª; 3ª; Modos: Indicativo; Conjuntivo; Condicional; Imperativo; Infinitivo)).
Grupo III
- Produção de um texto relacionado com os temas abordados.
terça-feira, 28 de abril de 2009
Clube Contadores de Histórias
A Rapariga e o Sonho
Era uma rapariga. E sonhava.
Uma rapariguinha muito ligada às flores, às folhas e tão presa à terra, como se dela tivesse nascido, como uma árvore.
Também se sentia muito prisioneira do sol, da lua e das estrelas, que imaginava tão tristes por estarem longe e sozinhas, que se dobravam nas águas do laguinho do jardim, onde as via reflectidas.
De íntimo fantasista e liberto, era do sol, da lua e das estrelas donde imaginava que tinham “chovido” uns seres invisíveis com quem brincava.
E as brincadeiras sucediam-se. Libertavam-na do seu peso e sustentavam-na no ar, quer com vara mágica, quer com um simples dedo.
E às vezes, faziam ainda descer sobre ela, ignoradas, poeiras e orvalhos astrais.
E tudo aquilo era maravilhoso, pois adorava subir pelas paredes do ar ou dançar no vento. E, como aqueles serzinhos não eram identificados pelos que a rodeavam, contava-lhes segredos só dela sabidos, fazendo florescer a amizade e entrelaçando os corações num abraço.
Tratava-os como uma mãezinha a uns filhos muito amados e contava--lhes histórias inventadas por ela ou deixava um a tomar conta de uma casinha, a fingir, sem telhado.
Outras vezes jogava às escondidas com eles, no jardim, ou vigiava-os, enquanto nadavam no laguinho-oceano, sempre à vista de terra e com a margem longa de ramos, benfazejos, para poderem agarrar-se e não se afogarem.
Também os deixava tomar conta dos seus castelos de puzzles.
Mas o que mais gostava era de provar-lhes t-shirts variadas ou tentar tirar-lhes medidas para trajes mágicos. Sim, porque os vestidos dela também eram como os das princesas de “Era uma vez...”, não apenas da cor do tempo, mas acesos por fogos cósmicos, cheios de corações a deitar raízes, de números fugidos da tabuada, espirais galácticas, malmequeres, margaridinhas entre caminhos concha de caracol, flores-aranhas, morangos verde-roxo, cravos alilasados, bocas-beijos, que sei eu.
Também amava brincar com coisas vivas e gostava muito de animais, encantados e encantadores.
Assim era tu cá tu lá com o bichano que, pasmado, a via ser capaz de fazer o pino não sobre a cabeça, mas nas perninhas curtas das tranças.
Às vezes, de repente e sem porquê, ficava triste e silenciosa. Então, o gato e as criaturinhas invisíveis conversavam entre si. O gato, amador de mimos e de festas sobre o pêlo, sentia-se muito abandonado, e, insistente, interrogava um dos serzinhos imaginados, que, cheio de paciência e enigmaticamente, lhe explicava que ela estava a crescer por dentro e sozinha.
Outras vezes, demorava muito tempo a arranjar-se, assistida pela sua aia, uma medusa-lunar que lhe tomava conta de uma joaninha do quintal, jóia-viva, com que fazia gosto de enfeitar-se, depois de vestida atrás da cortina de flores, trepadeiras-trevo.
Estava a tornar-se tão íntima de si e tão madura que crescia pelo sonho. Era isso. Mesmo no seu vestidinho andadeiro e de todos os dias, às pintas, como o de qualquer adolescente, e as suas trancinhas, via-se que tinha sofrido uma transformação.
Estava prestes a ser a Bela e a entrar no Jardim do Amor, para procurar, através do labirinto, um coração onde o seu pudesse reflectir-se e reconhecer-se.
Luísa Dacosta,Julho de 2001
Luísa Dacosta
A rapariga e o Sonho
Porto, Edições Asa, 2006
quinta-feira, 16 de abril de 2009
Clube Contadores de Histórias
A festa de Carnaval
— Porque é que estás a chorar, Susi? — pergunta Jacob.
— Porque a Catarina foi horrível para mim — soluça Susi.
A coroazinha de papel dourado que tem na cabeça está torta. O rímel escorreu-lhe das pestanas para a cara, e os olhos estão vermelhos de chorar.
Jacob tem vontade de dizer: “Tu às vezes também és má para a Catarina.” Mas pensa melhor e pergunta.
— Mas o que é que a Cati te fez?
— Riu-se de mim — choraminga Susi — e disse: “Isso é que é um vestido de princesa? Mais parece uma camisa de dormir melhorzinha!”
Jacob olha para o vestido de Susi. É comprido e branco, não muito largo, e enfeitado com rosas de papel de seda.
Catarina também está disfarçada de princesa. Tem uma saia de roda com muitos folhos na cintura. “Catarina parece mais uma princesa do que a Susi”, pensa Jacob.
— Tu também achas que isto é uma camisa de dormir, não é? — diz Susi com ar triste.
— De camisas de dormir eu não percebo muito — responde Jacob. — Mas podias ser a princesa de “A princesa e a ervilha”. Assim combina tudo: a camisa de dormir e a coroa.
Susi pára de chorar.
Tu és muito simpático, Jacob, mas a Catarina é má e eu não entendo como é que ela é tua amiga.
— Convido-te para um sorvete de laranja — diz Jacob — e danço contigo. Mas tens de prometer-me que deixas de estar zangada com a Catarina. Ela não estava a falar a sério. Se calhar, tinha um pouquinho de inveja de ti porque tu hoje podes usar rímel e ela não.
— Se calhar é por isso — diz Susi, limpando o rímel da cara.
— Mas agora já estás outra vez bonita — diz Jacob.
Na pista de dança encontram-se com Catarina.
— Olá, Catarina! — diz Susi amavelmente.
Tradução e adaptação
Lene Mayer-Skumanz (org.)
Jakob und Katharina
Wien, Herder Verlag, 1986
sábado, 28 de março de 2009
Clube Contadores de Histórias
Jacob toma uma decisão
Susi chegou à escola com olhos de choro.
— O que aconteceu? — pergunta Jacob.
— O meu porquinho-da-índia morreu — responde Susi. — O meu Sebastião, que tinha uma pinta preta no nariz.
— Oh — diz Jacob. — E agora estás triste.
Susi acena com a cabeça.
— Não podes pedir aos teus pais que te comprem outro? — pergunta Max.
— Podia, mas não quero — diz Susi. — Agora para o fim, o Sebastião era infeliz. Já não queria comer nada, tinha as patas paralisadas. Fazia-me tanta pena!
Susi chorava.
— O Sebastião era um porquinho-da-índia muito querido — diz Catarina.
— Mas já estava muito velho — comenta Rudi. — Todos temos de morrer; tu não podias fazer nada. Vá, não chores assim.
Jesus — pensa Jacob — porque é que o Sebastião teve de ser tão infeliz?....
— Deixa-a chorar — diz ele a Rudi.
— Há coisas mais importantes por que chorar — resmunga Rudi.
Jacob olha para Rudi.
— Pois há — diz Rudi. — Mas não se pode passar o tempo todo a chorar.
Jacob fica à espera, mas Rudi não quer falar mais. Só no caminho de regresso a casa começa a contar:
— Os meus pais, afinal, sempre querem divorciar-se.
— Oh! — exclama Jacob.
— Eu fico com a mãe — conta Rudi. — O pai vem buscar-me ao domingo, de quinze em quinze dias. A mãe volta a ir o dia inteiro para o escritório.
— Isso, realmente, não tem graça nenhuma — diz Jacob.
— Se eu pudesse aprender a aquecer a comida — continua Rudi — a avó não tinha de vir todos os dias a minha casa. Não gosto dela. Está sempre a dizer mal do pai.
— Podes vir comer a nossa casa — propõe Jacob. — Pelo menos de vez em quando. Assim não tens de aturá-la todos os dias.
— Era… Fala lá com a tua mãe.
Jacob promete que vai falar.
— Nem imaginas a sorte que tens com os teus pais — diz Rudi de repente. — Porque é que em nossa casa não pode ser assim? Compreendes isto?
— Não — responde Jacob.
À tarde, Jacob vai com a mãe visitar a bisavó.
— O médico esteve cá hoje — conta a mãe. — Teve de dar-lhe uma injecção contra as dores — e suspira. — É mau que a bisavó tenha de sofrer assim tanto.
A bisavó não suspira nem se queixa. Só tem a cara um pouco pálida. Olha para Jacob e pergunta:
— Então, há novidades na escola?
Jacob conta o que aconteceu ao porquinho-da-índia da Susi e que os pais de Rudi vão divorciar-se.
— É uma pena — lamenta a bisavó. — Pobre Sebastião.
Pobre Susi. Pobre Rudi. Há tanto sofrimento no mundo!
— E porquê? — pergunta Jacob.
— É um segredo — responde a bisavó. — Poucos têm a resposta para isso.
No regresso, Jacob caminha em silêncio ao lado da mãe.
Jesus — pensa ele — espera só até eu chegar à tua beira. Vou insistir tanto contigo, que hei-de receber uma resposta a todas as minhas perguntas.
Lene Mayer-Skumanz
Jakob und Katharina
Wien, Herder Verlag, 1986
quinta-feira, 19 de março de 2009
Clube Contadores de Histórias
A pedra no caminho
Conta-se a lenda de um rei que viveu há muitos anos num país para lá dos mares. Era muito sábio e não poupava esforços para inculcar bons hábitos nos seus súbditos. Frequentemente, fazia coisas que pareciam estranhas e inúteis; mas tudo se destinava a ensinar o povo a ser trabalhador e prudente.
— Nada de bom pode vir a uma nação — dizia ele — cujo povo reclama e espera que outros resolvam os seus problemas. Deus concede os seus dons a quem trata dos problemas por conta própria.
Uma noite, enquanto todos dormiam, pôs uma enorme pedra na estrada que passava pelo palácio. Depois, foi esconder-se atrás de uma cerca e esperou para ver o que acontecia.
Primeiro, veio um fazendeiro com uma carroça carregada de sementes que ele levava para a moagem.
— Onde já se viu tamanho descuido? — disse ele contrariado, enquanto desviava a sua parelha e contornava a pedra. — Por que motivo esses preguiçosos não mandam retirar a pedra da estrada?
E continuou a reclamar sobre a inutilidade dos outros, sem ao menos tocar, ele próprio, na pedra.
Logo depois surgiu a cantar um jovem soldado. A longa pluma do seu quépi ondulava na brisa, e uma espada reluzente pendia-lhe à cintura. Ele pensava na extraordinária coragem que revelaria na guerra.
O soldado não viu a pedra, mas tropeçou nela e estatelou-se no chão poeirento. Ergueu-se, sacudiu a poeira da roupa, pegou na espada e enfureceu-se com os preguiçosos que insensatamente haviam deixado uma pedra enorme na estrada. Também ele se afastou então, sem pensar uma única vez que ele próprio poderia retirar a pedra.
Assim correu o dia. Todos os que por ali passavam reclamavam e resmungavam por causa da pedra colocada na estrada, mas ninguém lhe tocava.
Finalmente, ao cair da noite, a filha do moleiro passou por lá. Era muito trabalhadora e estava cansada, pois desde cedo andara ocupada no moinho. Mas disse consigo própria: “Já está quase a escurecer e de noite, alguém pode tropeçar nesta pedra e ferir-se gravemente. Vou tirá-la do caminho.”
E tentou arrastar dali a pedra. Era muito pesada, mas a moça empurrou, e empurrou, e puxou, e inclinou, até que conseguiu retirá-la do lugar. Para sua surpresa, encontrou uma caixa debaixo da pedra.
Ergueu a caixa. Era pesada, pois estava cheia de alguma coisa. Havia na tampa os seguintes dizeres: “Esta caixa pertence a quem retirar a pedra.”
Ela abriu a caixa e descobriu que estava cheia de ouro.
A filha do moleiro foi para casa com o coração cheio de alegria. Quando o fazendeiro e o soldado e todos os outros ouviram o que havia ocorrido, juntaram-se em torno do local onde se encontrava a pedra. Revolveram com os pés o pó da estrada, na esperança de encontrarem um pedaço de ouro.
— Meus amigos — disse o rei — com frequência encontramos obstáculos e fardos no nosso caminho. Podemos, se assim preferirmos, reclamar alto e bom som enquanto nos desviamos deles, ou podemos retirá-los e descobrir o que eles significam. A decepção é normalmente o preço da preguiça.
Então, o sábio rei montou no seu cavalo e, dando delicadamente as boas-noites, retirou-se.
William J. Bennett
O Livro das Virtudes II
Editora Nova Fronteira, 1996
(adaptação)
domingo, 15 de março de 2009
Passatempo “Vamos Gigglar”
Passatempo “Vamos Gigglar”
O PNL, a RBE e a Revista Giggle propõem o passatempo "Vamos Gigglar" com a participação, individual e/ou do grupo - turma, em três rubricas diferentes, nomeadamente:
• Repórter X
- reportagem sobre a localidade onde moram, sobre um museu ou um monumento, ou seja, um texto que leve as pessoas a irem visitar este local;
- entrevista ou artigo sobre uma personalidade conhecida que tenha contribuído para a história da terra onde vivem.
• Giggle Opina e Clube do Livro
- artigo de opinião sobre um espectáculo, um museu, uma exposição, um filme, um cantor ou um grupo musical, um CD ou DVD, um jogo de computador ou playstation, um programa de TV, um restaurante, etc.
• Clube do Livro
- artigo de opinião sobre um livro que tenham lido e cuja leitura recomendem.
Os quatro melhores trabalhos em cada uma das rubricas serão premiados e publicados a partir da revista de Junho (publicada no final do mês de Maio).
Os trabalhos devem ser enviados para o endereço biblioteca@giggle.pt até ao dia 3 de Maio de 2009.
Para mais informações, consulta o cartaz afixado na Biblioteca.
Concurso Como se vive a Liberdade em Portugal…
Concurso Como se vive a Liberdade em Portugal…
Crescer em Democracia:
o olhar das crianças e dos jovens 35 anos depois do 25 de Abril
O concurso, de âmbito nacional, dirige-se às crianças e aos jovens que frequentam, no presente ano lectivo, o ensino básico (1º, 2º e 3º ciclos) e o ensino secundário.
A informação relativa ao presente concurso encontra-se disponível nos endereços da A25A [www.25abril.org], da APH (www.aph.pt) e da DGIDC [www.dgidc.min-edu.pt]. As candidaturas são submetidas on-line, através do preenchimento completo do formulário que se encontra disponível no endereço www.dgidc.min-edu.pt, mediante validação de utilizador (código GEPE da escola, ex-código GIASE, e respectiva palavra-chave).
O regulamento poderá ser consultado na Biblioteca/CRE
segunda-feira, 9 de março de 2009
Objectivos para o 2º teste de avaliação sumativa
Grupo I
- Interpretar um texto lírico;
- Identificar recursos expressivos: comparação, enumeração e onomatopeia.
- Analisar o poema formalmente: estrofe; verso.
Grupo II
Funcionamento da Língua:
- Identificar as classes e subclasses de palavras:nomes, verbos*, adjectivos, determinantes;
- Classificar as palavras quanto à flexão;
- Classificar sintacticamente frases.
- Identificar os tipos de discurso e transformar discurso directo em indirecto;
- Identificar a relação gráfica e fonética entre palavras (homónimas; homófonas; homógrafas; parónimas)
- Identificar a relação semântica entre palavras (sinónimos e antónimos)
- Identificar o processo de formação de palavras: derivadas por prefixação; sufixação; prefixação e sufixação.
* Verbos (regulares/Irregulares; Transitivos e Intransitivos; Conjugações - 1ª; 2ª; 3ª))
Grupo III
- Produção de um texto relacionado com os temas abordados.
quinta-feira, 5 de março de 2009
Clube Contadores de Histórias
Gabriel dos cabelos de ouro
Há muitos, muitos anos, andava de terra em terra a pedir esmola um velhotezinho careca. De Inverno, usava ele um gorro de lã enfiado até às orelhas e ninguém podia adivinhar que a sua cabeça era tão lisa e luzidia que mais parecia uma bola de marfim. Mas de Verão, o pobrezito não o aguentava por causa do calor que era muito e, assim, ele já sabia que, por onde passasse, os garotos iriam correr atrás dele a gritar:
— Olha o careca!... Olha o pelado!...
Cuidavam eles que o arreliavam. Mas o velhinho punha-se a abanar a cabeça de cima para baixo e de baixo para cima e a murmurar resignadamente:
— É bem feito!... É-me muito bem feito!... Os garotos calavam-
-se, intrigados com aquelas palavras. Até que um dia, um deles, mais amigo de saber que qualquer outro, resolveu aproximar-se e perguntar:
— Tiozinho, diz que é bem feito porquê?... Gosta de ser careca?
— Não, meu menino, não gosto — respondeu ele com um sorriso triste. — Quem poderia gostar?
— Então porque diz que é bem feito? — insistiu o garoto.
— Porque... — e o velhinho calou-se.
— Porquê, tiozinho?... Não quer dizer?...
— Bom... É que para te explicar tudo bem explicado, teria de te contar uma longa história. E estarás tu disposto a ouvi-la?
— Estou, pois.
Curiosos, os outros rapazitos, um a um, tinham vindo a acercar-
-se e todos eles gritaram em coro:
— Nós também queremos ouvir... Nós também queremos...
Então o velhinho sentou-se numa pedra, encostou-se a uma árvore e os garotos, uns dez, mais ou menos, sentaram-se no chão à sua frente, bem acomodados, de olhos bem abertos e ouvidos bem atentos.
E o velho começou:
— Pois é, meninos... Ninguém sabe o que a Vida lhe reserva... Às vezes tudo parece correr bem e, de repente, muda tudo. Comigo foi assim. Mas vamos à história... O meu nome é Gabriel. E tenho um irmão gémeo chamado Uriel. Os meus Pais eram pastores que do seu gado viviam. A lã e os queijos davam-lhes de sobra para o seu amanho. Mas não chegava para que se sentissem felizes. Eles queriam um filho. E então minha Mãe sonhava sonhos ambiciosos. À noitinha, quando aparecia no Céu a primeira estrela ou de madrugada quando, serenamente, adormecia a última, ela ria-se e dizia para o meu Pai:
— Vais ver... O nosso menino há-de ser mais lindo que a própria Estrela do Pastor ou que a Estrela da Manhã.
E quando o Sol despontava, a refulgir na Imensidade, minha Mãe continuava a sonhar em voz alta e extasiada:
— Vais ver... os cabelos do nosso menino hão-de brilhar como raios de sol.
— Tem juízo, mulher — atalhava meu Pai. — A mim me basta que seja um menino igual a qualquer outro.
— Isso não — protestava ela. — O meu menino há-de ser diferente. Há-de ser de ouro.
O certo é que o Céu a ouviu, pelo menos em parte: nasci de cabeça calva, tão calva como a tenho hoje, mas dourada e a brilhar de um brilho tão intenso que iluminava a casa de ponta a ponta. Quanto ao meu irmão — que ninguém esperava — esse era, sim, tal como o meu Pai queria o filho: igual a qualquer outro.
Minha Mãe, desde aquele primeiro momento, encheu-se de medo, não fosse alguém roubar-me por amor do tesouro em que eu, na verdade, me ia tornando, pois que a minha cabeleira brotava densa e vigorosa e crescia com rapidez incrível em fios de ouro puro. Mas, apesar dos seus cuidados, exultava:
— Tu, meu filho, não tens que te apoquentar: tens o teu pão garantido. Um só dos teus cabelos vale um ano de trabalhos e canseiras.
E, à cautela, ia tecendo, tecendo toucas e toucados com que escondia de olhos estranhos a maravilha nunca vista de um menino de cabelos de ouro.
Ora, ao passo que eu vivia, pode dizer-se que à sua sombra, quase prisioneiro dos seus receios e carinhos, mas bem convencido de que o mais importante era, de facto, esse futuro despreocupado de que ela me falava constantemente, meu irmão Uriel, um rapazinho moreno, activo, ágil e destemido, passava os dias fora de casa, as mais das vezes na companhia do Pai, ajudando-o na labuta das ovelhas. Conhecia-as pelos nomes, assobiava-lhes se elas pretendiam afastar-se ou apontava-as aos cães bem treinados que imediatamente obedeciam à sua voz. Ajudava a tosquiá-las. Ajudava a ordenhá-las. E ocupava-se dos cordeirinhos que nasciam no monte. Em apertos de trabalho, acudia a qualquer vizinho e, com uns e com outros, ia aprendendo a ler e a escrever. «Quero saber coisas», dizia ele. E, depois de tudo isto, sobrava-lhe tempo ainda para correr ao desafio com gente da nossa idade, jogar à pedra e ao pau, subir às árvores e atirar-se às ondas a nadar e a pescar. Na verdade, nada lhe metia medo.
À noite, quando chegava a casa, meu Pai tinha sempre alguma coisa de especial e extraordinário a contar do filho «igual a qualquer outro»:
— O rapaz é um azougue... Joga o pau que nem um feirante... Salta que nem um cabrito-montês... Nada que nem um peixe... Corre que nem um gamo... E já lê! Vê tu que já lê!...
— É vivo, é — concordava minha Mãe. E beijava-me, a mim, porque bem sabia que eu, no fundo, invejava o meu irmão, uma inveja amarga apesar de conformado à ideia de que neste mundo cada qual tinha o seu quinhão e que o meu era o melhor.
De repente, a sorte mudou de rumo. Num Inverno muito rigoroso, uma avalanche de neve desabou sobre a nossa aldeia e soterrou-a, com um fragor horrível que nunca mais se apagou dos meus ouvidos. Meus Pais lá ficaram e com eles muitos outros. Milagre foi que não ficassem todos: escaparam alguns. E esses resolveram fugir daquelas malfadadas paragens. Cada um seguiu o seu destino. Também Uriel decidiu que seguiríamos o nosso. E partimos, levando connosco apenas o que tínhamos no corpo: uns calções velhos, uma camisa rota e umas botas cambadas. Eu levava a mais um dos toucados tecidos por minha Mãe e que ela tanto recomendava que não tirasse da cabeça, à vista fosse de quem fosse. E Uriel levava o seu cajado de pastor.
Andámos, andámos, eu sempre a lastimar-me, Uriel sempre a procurar animar-me:
— Tens que ter um pouco mais de paciência — dizia ele. — Não tarda que encontremos gente e eu peço trabalho...
— Mas eu não quero trabalhar— replicava eu. — Tenho o meu pão garantido.
— Tenho eu bons braços — respondia Uriel. — E a troco do meu trabalho dar-me--ão de comer que baste para os dois.
Chegámos por fim a uma aldeia à beira-mar. Nas ruelas, nem vivalma. Fomos descendo até à praia e aí deparámos com um grupo enorme de mulheres e de crianças que choravam e se arrepelavam porque um barco quebrara as amarras e boiava à deriva em riscos de se despedaçar contra os rochedos. E ninguém acudia, pois que os homens capazes de o fazer tinham saído todos para a faina da pesca.
— Um barco novo!... Quem há-de aturar o meu homem!... — soluçava uma das mulheres.
Uriel adiantou-se:
— Chorar de nada serve, tiazinha — disse ele.
— É preciso é fazer alguma coisa de útil. Segure aqui.
Deu-lhe o cajado para a mão e, decidido, atirou-se à água e nadou, nadou, até que alcançou o barco.
Mudas de espanto, as mulheres olhavam, as crianças olhavam e ninguém podia acreditar naquilo que tinha em frente dos olhos: um rapazinho lutando contra as ondas bravias que o atiravam de alturas de entontecer a precipícios que elas próprias iam cavando, um rapazinho que acabou por dominar o barco e o arrastar até à areia.
Então de todos os lados rompeu um clamor alvoroçado:
— Valente rapaz!... Tu quem és?... Donde vens?... Como te chamas?
E riam e choravam, abraçavam-no e beijavam-no. Todas à uma queriam levá-lo para sua casa, dar-lhe roupas, dar-lhe de comer, acarinhá-lo.
— Ganhaste-o bem — diziam elas. — Ganhaste-o bem.
Eu seguia tudo aquilo de longe, magoadíssimo porque me parecia que ninguém reparava em mim. Mas enganava-me. Uma rapariguinha gentil pôs-se a fitar-me com estranheza e acabou por perguntar:
— E tu quem és, com esse chapéu tão feio?
Mais magoado fiquei ainda. E respondi altivamente:
— Sou Gabriel, o irmão gémeo desse que salvou o barco.
A rapariguinha fez um gesto de surpresa e desprezo:
— Nem pareces!... E então gémeo! — E correu a juntar-se às amigas. E eu vi que, à medida que ela falava, todas se iam voltando para o meu lado e desatavam a rir, e percebi que era de mim que falavam e riam.
Nunca tal me acontecera! E não voltaria a acontecer, deliberei eu. E, raivosamente, arranquei da cabeça o toucado, e os meus cabelos de ouro, a tilintar e a reluzir, cobriram-me até à cintura.
Sem bem saber como, vi-me envolvido por gente de todas as idades, que se empurrava e atropelava. E senti que mãos sôfregas e brutais me arrancavam aos punhados de cabelo. Coisa curiosa: não me doía. Mas enchi-me de pavor e gritei com todas as minhas forças:
— Socorro, Uriel!... Acode-me, Uriel!...
Imediatamente vi Uriel. Trazia na mão o seu cajado. E vestia uma camisola grossa e uns calções que eu não lhe conhecia. Intrépido como sempre, gritou, bateu, e conseguiu chegar até mim. E então, começou a manejar o seu pau com tanta arte que não tardou a abrir uma clareira à minha volta.
— Que ninguém se atreva! — ameaçava ele. E, agarrando-me por um braço, quase me arrastou pela praia além.
— Corre, Gabriel, corre — incitava-me ele. Tive tempo ainda de ver que toda aquela gente se adornava com os meus cabelos. Lançavam-nos ao pescoço, ao jeito de colares. Enrolavam-nos nos pulsos, ao jeito de braceletes. E o susto por que passara deu lugar a uma vaidade sem limites. E, assim, quando Uriel repetiu: «Corre, Gabriel, corre», respondi de mau modo:
— Não sou gamo, como tu.
Uriel olhou para mim, surpreendido:
— Não vês que podem voltar?... Espera... Na verdade, os teus cabelos são bonitos demais. O melhor é continuar a escondê-los. Põe o carapuço. — Ele próprio mo ajeitou na cabeça. — Assim é melhor. Vamos.
Obedecer-lhe em tudo começava a tornar-se-me insuportável. Senti nascer em mim o desejo péssimo de o atormentar:
— Corres muito porque tens o cajado em que te apoias... Olha lá se mo emprestas!...
Uriel nem hesitou:
— Pois empresto. Pega.
Mas eu não lhe peguei.
— Pensando bem, não o quero para nada. É mais um tropeço. Leva-o tu, já que o trouxeste. Tenho é frio. Tu não, porque tens boas roupas.
Uriel pôs-se a rir:
— Queres trocar?
— Quero a camisola.
Uriel despiu-a e deu-ma:
— Assim até fico melhor... Ela é quente.
Eu vesti-a, não muito satisfeito com a minha consciência. Mas continuei:
— E tenho fome. Uriel voltou a rir-se:
— Deves ter, sim. — Tirou do bolso um merendeiro ainda morno. — Foram as mulheres que mo deram... Guardei-o para ti.
Tirei-lho da mão, bruscamente. E perguntei, irritado:
— Porque estás tu sempre a rir?
Uriel pôs-se muito sério:
— Porque não vale a pena chorar. Era bom que aprendesses. E, agora, come depressa. Ou antes, vamos andando e tu vais comendo. Vem daí.
— Para onde?
— Só Deus o sabe. Aqui não estás seguro.
Eu ia cansado e com calor. Ele não. Corria ligeiro à minha frente. Saltava barrancos. Voltava atrás. Pulava de pedra em pedra. Dependurava-se dos ramos baixos das árvores. E tudo isto sem parar. Mas, de súbito, estacou, fitou um ponto ainda distante:
— Um lobo — disse ele. — Não saias daí. Vi-o espiar, rastejar, esconder-se atrás de um penedo...
O lobo avançava e na minha direcção. Levava nos dentes um cordeiro a balir. Eu tremia. Queria fugir e os meus pés eram de chumbo. Queria gritar e a minha garganta era um lenho seco. Uriel... Onde estaria Uriel que não me acudia?
Uriel esperava o lobo. E, no momento propício, saltou do esconderijo e, com o cajado, desferiu-lhe um golpe certeiro. O lobo largou a presa, uivou de dor e acabou por fugir aos galões e desaparecer por entre as fragas.
Uriel pegou no cordeiro, pô-lo às costas e chamou por mim:
— Gabriel... Gabriel...
Apareci-lhe, ainda tonto de medo. Quanto a Uriel, era como se nada tivesse acontecido.
— Vamos descer ao vale — disse ele. — O rebanho não deve andar longe.
Antes, porém, de lá chegarmos, vimos gente que subia a encosta ao nosso encontro. À frente vinha o pastor:
— Eia, rapaz, vi tudo!... Tens cá uma destas almas!...
E, mais uma vez, lá foi Uriel aclamado e levado pela multidão, pasmada e entusiasmada. E eu atrás, roído de inveja! As coisas não ficariam assim.
Acotovelando uns e outros, fui perfilar-me ao lado dele.
— Que vem a ser isto?... — exclamou o pastor. — Que barrete mais esquisito tu arranjaste, amigo!... — E largou uma tal gargalhada que todos os outros desataram a rir também, e só se calaram quando Uriel gritou:
— Deixem-no! É meu irmão.
Achei que não bastava. Queria valer mais do que ele e pelos meus próprios méritos. E arremessei o toucado ao chão.
— Sou Gabriel dos Cabelos de Ouro — proclamei bem alto.
Os meus cabelos soltos eram tão belos que todos pareciam ter esquecido o feito de Uriel para se quedarem boquiabertos a olhá-los. Foi um momento só. Logo mãos ávidas se estenderam para eles e, quando se retiravam, dos seus dedos escorriam fios de ouro a faiscar.
Apesar de todo o meu orgulho, gritei, gritei, gritei. Mais uma vez Uriel me valeu, mais uma vez me arrastou e mais uma vez me obrigou a esconder o meu tesouro.
— Ainda acabas por ficar sem nenhum — ia dizendo Uriel.
Eu esquecia tudo com demasiada rapidez:
— Não te rales... São meus, não são? E hão-de crescer outra vez como todos os outros, não é?
Uriel não deu resposta. Caminhava depressa. Que iria a pensar de mim?... Pouco me importava. Insisti:
— Crescem ou não crescem outra vez?
— Sei lá... É natural que sim.
— Então pronto.
Apressei-me para não o perder de vista. Andámos, andámos sem destino. Chegámos por fim a uma cidade tão grande como nunca poderíamos ter imaginado. O movimento era de enlouquecer, o barulho infernal, e eu vi bem que Uriel, sempre animoso, estava tão desnorteado como eu.
— Se ficássemos por aqui? — disse ele, apontando os degraus de um portal.
Sentámo-nos. Uriel encostou-se e pegou logo no sono. Eu não o conseguia. O ruído era muito. A fome era muita. Olhei para Uriel. Dormia profundamente. Pus-me de pé e deixei-me guiar pelo cheiro aliciante de comidas boas, que se espalhava pelo ar e me lembrava os bons tempos da nossa casa.
Aspirando, aspirando, cheguei à entrada de uma sala dez vezes maior que o nosso antigo redil. Ao meio, sentados em volta de uma grande mesa, muitos e muitos homens comiam, bebiam e conversavam. E um outro ia e vinha, trazendo e levando tachos e panelas fumegantes. Não resisti. Entrei e fui ter com ele:
— Dê-me de comer a mim também. Morro de fome.
Ele olhou-me de alto a baixo:
— Isto paga-se, meu rapaz.
Admirei-me:
— Lá na minha terra não era assim. A minha Mãe, quando tinha de comer, dava-o a quem o pedia. — E eu quase chorava.
— Mas eu não sou a tua Mãe. Aqui paga-se.
— Eu pago o que o senhor quiser.
— Com quê?... Não tens cara de muitos haveres.
— Engana-se. Venho já.
Aprendera a desconfiar. Saí. Procurei um recanto escuro e arranquei uma porção de cabelos.
Voltei à sala grande com a fome a doer-me cada vez mais e os fios de ouro a luzirem-me nas mãos.
— Chega? — perguntei.
O homem abriu a boca, de tão pasmado.
— Dá cá isso! — E, num instante, fê-los desaparecer no bolso, enquanto lançava olhares esgazeados em redor, não fosse alguém ter dado conta. Mas tudo passara despercebido e a sua voz tornou-se branda e afável:
— Onde o arranjaste?... Come, rapazinho, come à tua vontade. E ainda podes levar o que te apetecer para o teu farnel. Ein! Que dizes tu a isto?
Eu não dizia nada. Devorava. E o homem sempre a servir-me iguaria sobre iguaria, e a insistir:
— Diz-me, rapazinho, onde arranjaste o ouro?... Come, come, meu filho... Olha-me para esta delícia de carne... Onde arranjaste o ouro?
Todo ele era mel e ternura. Mas eu apanhara medo às multidões. E apontei para os homens que continuavam à mesa. Ele entendeu. E fez-se ainda mais carinhoso:
— Olha, meu queridinho, dorme cá. Arranjo-te uma caminha fofa. E amanhã falamos, está bem?...
Uma caminha fofa!... Nem quis saber de Uriel. Aceitei. E dormi, dormi, como há muito não dormia.
Acordei havia ainda estrelas no Céu. Não percebi logo onde estava. Na caminha fofa não era, de certeza. Era, sim, nas pedras duras de uma rua estreita e enlameada. No chão, a meu lado, um saco de comida que chegaria bem para uma semana.
Palpei a cabeça. Já lá não estava o toucado, mas sim uma boinazita vulgar. E dentro dela alguma coisa faltava: o homem roubara-me todo o meu cabelo de ouro.
Só então me veio à ideia que estava sozinho numa terra estranha, que não tinha com que pagar fosse o que fosse enquanto o cabelo não me crescesse e que não sabia de Uriel nem ele de mim.
Vagueei pela cidade na esperança de o encontrar. Talvez não estivesse muito longe...
Nisto, ao dobrar de uma esquina, vi ao fundo da rua um clarão intenso. Corria gente de todos os lados. Corri também. Vi uma casa a arder. Labaredas vermelhas saltavam das janelas e do telhado, em turbilhões pavorosos. Uma mulher desgrenhada gritava e esbracejava tentando arrancar-se às mãos que a seguravam.
— A minha filha! Larguem-me! Quero a minha filha!
Mas ninguém considerava possível entrar naquele braseiro onde iriam morrer uma criança e um rapazinho que a ele se atrevera e que não voltara.
— Morreram os dois — murmurava-se.
E a mulher chorava e já todos choravam com ela.
— Deixem-me! Quero a minha filha! Dou tudo o que tenho a quem salvar a minha filha!
Pensei logo que, se ali estivesse Uriel, alguma coisa haveria de fazer, não hesitaria, arrojar-se-ia às chamas... E eu tinha razão. Vi-o, vi o próprio Uriel aparecer à porta da casa incendiada, cercado de labaredas altíssimas e com uma criança nos braços. Vinha negro, a roupa queimada, mas nunca esqueci o seu ar de felicidade ao ver a mãe agarrada à filha, a beijá-la, a apertá-la, sem poder convencer-se de que a tinha ali, viva, depois de a ter tido por morta nos horrores daquele inferno.
Já mais calma, aproximou-se de Uriel. Eu aproximei-me também sem que ele desse por mim. Donde estava ouvia-os nitidamente:
— Como te chamas? — perguntou ela.
— Uriel.
— Teus pais onde estão?
— Senhora, estão ambos no Céu.
— Serás meu filho, Uriel. Dar-te-ei o que tu quiseres.
— Senhora, nada quero senão trabalho.
— Que gostarias tu de vir a ser?
— Meu Pai era pastor. Sei toda a sua arte. Mas gostava de saber coisas.
— Saberás tudo quanto desejares saber. Vem comigo.
— Obrigado, senhora, mas não posso. Tenho um irmão e desde ontem que não sei dele. Tenho de o procurar.
— Ajudar-te-ei. Encontrá-lo-emos. E viverá contigo e estudará contigo.
Ouvira o suficiente. Fugi. Passara a admirar Uriel como nunca o admirara. Mas também compreendera que nunca seria como ele, que não me interessava saber coisas, que não me interessava trabalhar, que me bastavam os meus cabelos de ouro. Eles cresceriam e eu já sabia que tinha de os resguardar e esconder da cupidez do mundo. E que teria sempre esse mundo a meus pés, com um simples punhado deles.
Assim pensava eu. Mas o que nunca pensei foi que tivesse de os poupar. Cobiçava tudo e, com os meus cabelos, tudo conseguia. Esbanjei-os, sem querer convencer-me de que eles se iam tornando cada vez mais leves, cada vez mais raros. E era eu ainda bem novo quando me vi de cabeça pelada como a palma da minha mão e sem sombras da sua antiga e bela cor de ouro.
E eu não tinha mais nada.
Há uns anos atrás, soube de Uriel. Estudou. É um homem de valor e de tanta sabedoria que vai gente de muito longe em busca do seu conselho. Acode a todos. Todos o estimam. Casou com a menina que salvou das chamas. Tem filhos, um rancho deles. Com certeza que é feliz. E eu... eu sou isto que estão vendo... uma miséria.
Gabriel, o velhotezinho careca, suspirou e calou-se.
Os garotos olhavam-no, também em silêncio.
— Foi bonita a sua história — disse um, por fim. — Acabou?
— Não, não acabou. Queria ainda que me dissessem qual dos dois gostariam de ser: Uriel ou Gabriel dos Cabelos de Ouro?
— Uriel — responderam todos.
— Valeu a pena contá-la — disse o velho. Levantou-se devagar e enfiou o gorro: — O tempo arrefeceu...
E lá foi, de sacola ao ombro, arrastando os pés pela estrada fora.
Patrícia Joyce
Gabriel dos cabelos de ouro e outras histórias
Lisboa, Editorial Verbo, 1983
domingo, 1 de março de 2009
Objectivos gerais - Teste de avaliação sumativa - 9º ano
Grupo I
- Interpretar um excerto de Os Lusíadas, de Luís de Camões;
- Identificar recursos estilísticos;
- Conhecer as estruturas interna e externa e os planos narrativos;
- Analisar formalmente uma estrofe.
Grupo II
- Funcionamento da língua:
- Identificar as classes e subclasses de palavras;
- Classificar sintacticamente frases;
- Dividir e classificar orações;
- Conjugar verbos (tempos simples e compostos; conjugação pronominal simples e reflexa;
Grupo III
Produzir um texto relacionado com o tema Viagem/Aventura.
domingo, 22 de fevereiro de 2009
Clube Contadores de Histórias
A Cidade dos Resmungos
Era uma vez um lugar chamado Cidade dos Resmungos, onde todos resmungavam, resmungavam, resmungavam. No Verão, resmungavam que estava muito quente. No Inverno, que estava muito frio. Quando chovia, as crianças choramingavam porque não podiam sair. Quando fazia sol, reclamavam que não tinham o que fazer. Os vizinhos queixavam-se uns dos outros, os pais queixavam-se dos filhos, os irmãos das irmãs. Todos tinham um problema, e todos reclamavam que alguém deveria fazer alguma coisa.
Um dia chegou à cidade um vendedor ambulante carregando um enorme cesto às costas. Ao perceber toda aquela inquietação e choradeira, pôs o cesto no chão e gritou:
— Ó cidadãos deste belo lugar! Os campos estão abarrotados de trigo, os pomares carregados de frutas. As cordilheiras são cobertas de florestas espessas, e os vales banhados por rios profundos. Jamais vi um lugar abençoado com tantos benefícios e tamanha abundância. Por quê tanta insatisfação? Aproximem-se, e eu mostrar-lhes-ei o caminho para a felicidade.
Ora, a camisa do vendedor ambulante estava rasgada e puída. Havia remendos nas calças e buracos nos sapatos. As pessoas riram ao pensar que alguém como ele pudesse mostrar-lhes como ser feliz. Mas, enquanto riam, ele puxou uma corda comprida do cesto e esticou-a entre dois postes na praça da cidade.
Então, segurando o cesto diante de si, gritou:
— Povo desta cidade! Aqueles que estiverem insatisfeitos escrevam os seus problemas num pedaço de papel e ponham-no dentro deste cesto. Trocarei os vossos problemas por felicidade!
A multidão aglomerou-se ao seu redor. Ninguém hesitou diante da oportunidade de se livrar dos problemas. Todos os homens, mulheres e crianças da vila rabiscaram a sua queixa num pedaço de papel e lançaram-no no cesto.
Observaram o vendedor que pegava em cada problema e o pendurava na corda.
Quando terminou, havia problemas a tremularem em cada polegada da corda, de um extremo a outro. Disse então:
— Agora cada um de vocês deve retirar desta linha mágica o menor problema que puder encontrar.
Todos correram para examinar os problemas. Procuraram, manusearam os pedaços de papel e ponderaram, cada qual tentando escolher o menor problema. Ao fim de algum tempo, a corda estava vazia.
Eis que cada um segurava o mesmíssimo problema que tinha colocado no cesto. Cada pessoa havia escolhido o seu próprio problema, achando ser ele o menor de todos.
Daí por diante, o povo daquela cidade deixou de resmungar constantemente. E sempre que alguém sentia o desejo de resmungar ou de reclamar, pensava no vendedor e na sua corda mágica.
William J. Bennett
O Livro das Virtudes II
Editora Nova Fronteira, 1996
(adaptação)
quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009
Informação - Exame LP 2008-2009
Encontram-se disponíveis no GAVE as informações relativas ao Exame Nacional de LP que se irá realizar no corrente ano lectivo.
http://www.gave.min-edu.pt/np3content/?newsId=218&fileName=IE_Linguaportuguesa_22_09.pdf
http://www.gave.min-edu.pt/np3content/?newsId=218&fileName=IE_Linguaportuguesa_22_09.pdf
terça-feira, 10 de fevereiro de 2009
quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009
Clube Contadores de Histórias
A história de Cristina
Cristina é uma menina insignificante e apagada. Faz lembrar margaridas na berma do caminho, calcadas por quem passa – diz-me a Sr.ª Anders, de quem ouvi esta história.
– A Cris já tem seis anos e tem de ir para a escola – diz a mãe.
Mas a delegada de saúde disse que a Cris ainda tinha de ficar mais um ano em casa, a brincar. Cris gatinha para debaixo da mesa, para junto de Nenna, a irmã de quatro anos, e aí brincam as duas. Cris é a Cris, e Nenna faz de mãe.
– Tens de ir para a escola! – diz a mãe. E só de pensar que Cris não pode ir para a escola, bebe imediatamente uns goles da garrafa.
Um ano passa depressa. Cris já tem sete anos.
– Agora somos obrigados a aceitá-la – diz-lhe a delegada de saúde.
Cris vai então para a classe do Sr. Pusback, que é muito engraçado e de quem as crianças gostam muito. Um ano depois, na ficha de avaliação vem registado que Cris fez um primeiro ano satisfatório e que, por isso, passa de ano. Vai agora para a segunda classe, e Nenna entra para a primeira. Passado meio ano, o professor informa o director que Cris não consegue ler.
Cris vai fazer nove anos. E quem tem nove anos e não sabe ler, tem de ir para uma escola de crianças com problemas de aprendizagem. Uma senhora que Cris não conhece vem à escola, fica sozinha com ela numa sala, faz-lhe muitas perguntas, manda Cris fazer diversas coisas, trabalhar com pequenas peças de madeira, observar imagens, desenhar linhas, pintar. Durante a manhã inteira, das oito às doze horas. A senhora faz um intervalo para fumar e Cris tem autorização para ir ao quarto de banho e comer o pão com manteiga, mas Cris não trouxe pão para comer.
Dias depois, chega uma carta com o carimbo do ministério.
– És tão palerma! – grita-lhe a mãe. Cris apanha um par de estalos que a atiram ao chão. Gatinha imediatamente com Nenna para debaixo da mesa. E brincam. Cris é Cris, e Nenna faz de senhora desconhecida que foi à escola e fuma.
Tempo depois, saem as avaliações. Nenna passa de ano, mas Cris não.
– Espera que já lhes digo! – exclamou a mãe. Cris não sabe por quem deve esperar. Pelo Sr. Pusbach, talvez? Para que ele lhe explique por que é que ela não conseguiu aprender a ler? Mas isso nem ele próprio sabe! Todas as outras crianças aprenderam a ler… Ou será que deve esperar pela senhora desconhecida? Para que lhe diga como conseguiu descobrir, das oito às doze horas, que Cris tinha pouca inteligência para frequentar uma escola normal. Calculou-lhe um QI de 54, o que está no limiar da imbecilidade.
Nenhum adulto consegue falar com alguém tão palerma, por isso Cris fica sem saber o que vinha na carta que o ministério enviou: que os pais demoraram demasiado tempo a enviar a autorização, que a escola do ensino especial já está cheia, e que por isso Cris tem de ir para uma escola para crianças com atrasos mentais.
No último dia de férias, chega, pela terceira vez, uma carta do ministério, onde é dito novamente que, uma vez que os pais demoraram a conceder a autorização, Cris já não pode ir à escola durante o próximo ano (suspensão da obrigatoriedade escolar, de acordo com o artigo 14 do regulamento escolar).
– Estão malucos! – grita a mãe, e o pai bebe logo de enfiada três copos de aguardente. Depois atira o copo contra a parede, e Cris tem de varrer os vidros.
– A partir de hoje vão as duas para a segunda classe, para a Sr.ª Anders, e sentam-se uma ao lado da outra, percebido? – disse a mãe na manhã seguinte.
Cris e Nenna vão para o autocarro escolar enquanto a mãe se lança para a bicicleta e voa para a escola. Quer dizer das boas ao director.
Mas o director está doente. A substituí-lo está a Sra. Anders, que até fica tonta com tantas leis e parágrafos. Diz também que a situação em que Cris se encontra foi provocada pela mãe. O que é que tem contra a escola de ensino especial da vila vizinha? Só se ouve falar bem daquela escola. Sim, sim, os edifícios são bonitos, diz a Sr. Blattsch, mãe de Cris… Já lá foi de bicicleta.
A campainha toca.
– Tenho de ir para as aulas – diz a Sr.ª Anders, que ainda acompanha a Sr.ª Blattsch pelo corredor e depois se dirige para a sala de aula. E o que vê? Cris e Nenna sentadas ao lado uma da outra, como se fossem uma só.
A Sr.ª Anders vai a correr ao recreio, mas já não vê a Sr.ª Blattsch, que saiu dali à velocidade do vento.
– Que descarada! – vocifera a Sr.ª Anders. – Deixar-me assim uma prenda destas, como se a minha turma não estivesse já suficientemente cheia. Não pense ela que a vou deixar fazer o que quer! A Cris que pegue na sacola e que vá para casa. Se o autocarro já tiver partido, que vá a pé.
A Sr.ª Anders volta a correr para a sala mas vê os olhos claros de Cris e o medo bem no fundo deles, e resolve não dizer nada. Pelo meio-dia, dez minutos antes de tocar, senta-se à secretária e escreve:
Cara Sr.ª Blattsch
Daqui em diante, deixe ficar a Cris em casa, tal como determinado pelo ministério.
O que é que a Cris vai fazer, se tiver de ficar em casa? – pergunta uma voz. Uma voz tímida e baixa. A Sr.ª Anders parece conhecê-la, já a ouviu mais vezes… – Vai brincar com garrafas vazias de aguardente? E as pessoas da aldeia, o que dirão? “Uma palerma. É tão burra, que nem a querem na escola!” Mas porque é que estás a escrever? Não lhe basta já a carta do Ministério? Ainda tens tu de te fazer importante?
Nunca na vida! Quem é que pensa numa coisa dessas?
Eu!
Eu? Quem és tu?
Prefiro antes dizer-te quem não sou. Bem, não sou essa pessoa que aceita todas as ordens do ministério. Há muito, muito tempo, antes de te tornares uma funcionária do estado, também foste uma menina indefesa e insignificante como a Cris…
Eu fui como a Cris? Nunca, podes ter a certeza. Nunca!
Não precisas de ter medo que as crianças ouçam o que te digo. Para elas sou completamente invisível e inaudível. Claro que eras uma criança esperta, se não, não tinhas chegado a professora. Mas talvez te lembres ainda daquela pequena, a segunda a contar do fim, quando se tinham de colocar por ordem de tamanho. E nas aulas de ginástica tinham de se pôr por ordem…
…lembro-me, de facto…
E quem era aquela menina esquisita e fraquinha, que na escola não se atrevia a chegar junto do professor com o lápis da lousa partido…?
…também me lembro disso…
E quem é que era tão imbecil, desculpa a palavra, que não conseguia perceber que três mais três e quatro mais cinco pedem números determinados, e não uns algarismos quaisquer à escolha?...
Deixa-me rir! Era eu!
Era eu! Era eu! Era eu! Há tanto tempo que desejo que te lembres de mim e me chames pelo nome.
Oh, já está a tocar! Não posso dar à Cris a carta para entregar à mãe. Ainda não a acabei…
Rasga-a, por favor! Não é bom escrever cartas que não sirvam para o bem das crianças. Gostarias de ter levado uma carta dessas à tua mãe? Um professor não tem de ser só inteligente, garanto-te. A inteligência não chega. Também precisa de saber sentir o que sentia quando era criança…
* *
Olá! Hoje já é o quinto dia de aulas depois das férias, se não estou em erro.
Sabes o que é a imbecilidade? Fazes ideia do que é…
E tu, fazes?
Vou mostrar-te, presta atenção!
– Cris, ora lê o que está escrito no quadro.
…
– Vou ler-te em voz alta: mamã. Mmmmmaaaammmmãããã. Que sons é que ouves?
…
Pobre idiota! Tem a idiotice estampada na cara.
Ela pensa que vai apanhar já um estalo da mamã. Apaga a palavra mamã, Maria! Usa uma palavra de que todas as crianças gostam.
Sabes alguma?
Rir.
– Cris, olha. Vou apagar mamã e vou escrever uma palavra nova: rir. Tu gostas de rir, não gostas? Rrrrir. Que sons é que ouves?
…
– Vou escrever outra palavra: fazer. Fazer rir. Soa bem, não soa? Ora diz lá tu.
…
– Vou escrever outra palavra: desenhar. Também gostas de ddeeseenhnhaarrr! Ouves os sons?
Ergueu os cantos da boca dois milímetros. Isto não é um sucesso? Deixa-a desenhar.
– Agora podes fazer um desenho bonito, Cris.
Ainda me lembro de quando aprendi a ler. Quando pela primeira vez dei conta de que não só ouvia mas também via as letras das palavras. Fiquei tão feliz! Profundamente admirada com essa descoberta! Tive o sonho mais bonito de todos os meus muitos sonhos. O meu amigo Itze e eu navegávamos pelo céu num navio de nuvens e ouvíamo-las todas cantar… O que é que a Cris está a pintar? … Uma mesa, dois bancos por baixo, o risco da boca é redondo nas duas crianças; quer dizer que estão a rir. E também copiou uma palavra do quadro: rir. Como é que a Nenna aprendeu a ler?
Por acaso foi normalmente. Só que tomei mais cuidado no início, porque já sabia o que se passava em casa.
Tomar cuidado? Será que aprender a ler pode ser perigoso?
Se se perde a ligação, sim.
Se calhar a Cris também perdeu a ligação.
Com a Cris é mesmo falta de esperteza, acabaste agora de ver com os teus próprios olhos.
Talvez seja “ligação” e burrice. Quem está sempre a apanhar estalos facilmente apanha uma má ligação, mas será que também tem de apanhar a burrice da leitura? Deixa-a brincar debaixo da mesa com a Nenna ao jogo do “Vamos ouvir as letras”. Nenna gosta da Cris e a Cris da Nenna. Aprende-se bem com alguém de quem se gosta. Deixa-me falar com a Nenna.
* *
“A mãe diz-me que não devo gastar tanto papel, porque o papel custa dinheiro. A Nenna tirou um bloco do balcão da loja para mim. É publicidade, e nisso podemos pegar, diz a Nenna. Faço desenhos pequeninos. Hoje vamos brincar a uma coisa nova, disse a Nenna. Hoje sou o bichinho do ouvido. Quando esse bichinho limpa as orelhas a alguém, essa pessoa consegue ouvir as letras das palavras.”
– Limpopo, limpopo, limpopo-te as orelhas. Ouves o p em limppo?
– Sim, ouço o p em limppo.
– E a Sr.ª Anders é boa. Não precisas de ter medo dela. Ouves o m em mmedo?
– Sim, ouço o m em mmedo.
– Portanto, não precisas de ter medo nenhum da Sr.ª Anders. Se errares, ela não se vai rir de ti. E os outros meninos também não se riem de ti, porque isso não é justo. Só o Ergon é que às vezes se ri, porque ouve mal. Mas depois também ouve da Sr.ª Anders.
– Com o Pusback riam-se sempre muito.
– Mas isso já passou – diz Nenna. – E como tu fazes uns desenhos tão bonitos, agora vou desenhar-te como se faz um p. Agora já consegues as duas coisas: ouvir e desenhar o p. Vamos brincar a sério às escolinhas. Se ouvires o que eu ouço em ppino, se ouvires sem ajuda, então és uma menina esperta.
– Pino, pino, P! P! Eu sou esperta!
* *
Quando foi a última vez que te ocupaste dela? Há quatro ou há cinco dias?
Tenho trinta e duas crianças na turma sem contar com a Cris. – disse Maria Anders. – São trinta e duas crianças com as quais tenho de me ocupar, o que, por si só, já é muito trabalho e às vezes bem difícil de levar a cabo, acredita. Não me sinto responsável pela Cris. Não estudei idiotice.
Foi por isso que pedimos ajuda à Nenna.
Pedir ajuda? Mas que palavra tão forte para este caso. Permitimos que Cris viesse para a escola. Ela porta-se bem, não perturba as aulas. Faz sarrabiscos e desenha. Sempre está melhor aqui do que se estivesse sentada em casa. Faço mais do que o que me é autorizado pelo ministério.
Não poderias ocupar-te dela só mais um pouco?
Mas como? Eu faço perguntas, ela não responde. Torno a perguntar, ponho-lhe a resposta na boca, por assim dizer. Ela continua sem responder. Quantas vezes tenho de repetir isto? Eu tenho de ver resultados, se não, um professor também não se sente motivado. E também não quero perder o meu tempo.
Será que cada funcionário público tem de se esquecer do que sentiu em criança?
Andas constantemente a lembrar-mo.
A Cris já cá está há dez dias. Em dez dias ainda não te disse uma palavra, mas o lápis dela fala com o papel. Vai até lá e dá uma olhadela.
Não vejo nada de interesse nos gatafunhos dela.
A última vez que olhaste para eles foi há cinco dias. Por favor, vai até lá outra vez…
PINO PATO
Os cantos da boca de Cris estão virados para cima. Quase sorri. Aponta com o lápis primeiro para uma palavra, depois para a outra. Os lábios abrem uma fresta.
Quer dizer-te alguma coisa, Maria. Depressa, baixa-te para perceberes…
Cris fala tão baixinho que nem na mesa do lado a ouvem.
– Se trocar este por este – diz ela batendo primeiro no A, depois no I – fica pano.
Mas isso é óptimo! É mesmo bom! Ela percebeu como funciona…
Se eu não tivesse vivido isto, disse mais tarde Maria Anders, acharia a história impossível. Uma coisa impossível como esta é o melhor que pode acontecer a um professor. Não se consegue esquecer, pensa-se e volta-se a pensar. Uma pessoa nunca se cansa de reflectir nesta história, acho eu. Na altura, falei abertamente com a Cris e com a Nenna. Expliquei-lhes qual era o problema dela, mas que ia conseguir aprender. Todas as manhãs, eu estudava uns minutos com ela, e Nenna fazia o mesmo à tarde. Foi simplesmente espantoso como Cris conseguiu aprender. Passados poucos meses já conseguia ler sozinha textos desconhecidos. Então, peguei no telefone, contactei o ministério e informei que tinha agido contra as ordens, e expliquei porquê. Disse ainda que a Cris agora já sabia ler, que aprendera com a ajuda da irmã. Meio ano mais tarde, a colega voltou a vir fazer um teste de inteligência e redigiu uma carta onde escreveu: “Cris desenvolveu uma boa técnica de leitura mas não entende nada do que lê.” Bem, este é o problema da ligação. Quando Cris sente que está a ser controlada, não abre a boca. Nem mesmo hoje. E já está com Nenna no quinto ano.
Irmela Wendt
Jutta Modler (org.)
Brücken Bauen
Wien, Herder, 1987
Cristina é uma menina insignificante e apagada. Faz lembrar margaridas na berma do caminho, calcadas por quem passa – diz-me a Sr.ª Anders, de quem ouvi esta história.
– A Cris já tem seis anos e tem de ir para a escola – diz a mãe.
Mas a delegada de saúde disse que a Cris ainda tinha de ficar mais um ano em casa, a brincar. Cris gatinha para debaixo da mesa, para junto de Nenna, a irmã de quatro anos, e aí brincam as duas. Cris é a Cris, e Nenna faz de mãe.
– Tens de ir para a escola! – diz a mãe. E só de pensar que Cris não pode ir para a escola, bebe imediatamente uns goles da garrafa.
Um ano passa depressa. Cris já tem sete anos.
– Agora somos obrigados a aceitá-la – diz-lhe a delegada de saúde.
Cris vai então para a classe do Sr. Pusback, que é muito engraçado e de quem as crianças gostam muito. Um ano depois, na ficha de avaliação vem registado que Cris fez um primeiro ano satisfatório e que, por isso, passa de ano. Vai agora para a segunda classe, e Nenna entra para a primeira. Passado meio ano, o professor informa o director que Cris não consegue ler.
Cris vai fazer nove anos. E quem tem nove anos e não sabe ler, tem de ir para uma escola de crianças com problemas de aprendizagem. Uma senhora que Cris não conhece vem à escola, fica sozinha com ela numa sala, faz-lhe muitas perguntas, manda Cris fazer diversas coisas, trabalhar com pequenas peças de madeira, observar imagens, desenhar linhas, pintar. Durante a manhã inteira, das oito às doze horas. A senhora faz um intervalo para fumar e Cris tem autorização para ir ao quarto de banho e comer o pão com manteiga, mas Cris não trouxe pão para comer.
Dias depois, chega uma carta com o carimbo do ministério.
– És tão palerma! – grita-lhe a mãe. Cris apanha um par de estalos que a atiram ao chão. Gatinha imediatamente com Nenna para debaixo da mesa. E brincam. Cris é Cris, e Nenna faz de senhora desconhecida que foi à escola e fuma.
Tempo depois, saem as avaliações. Nenna passa de ano, mas Cris não.
– Espera que já lhes digo! – exclamou a mãe. Cris não sabe por quem deve esperar. Pelo Sr. Pusbach, talvez? Para que ele lhe explique por que é que ela não conseguiu aprender a ler? Mas isso nem ele próprio sabe! Todas as outras crianças aprenderam a ler… Ou será que deve esperar pela senhora desconhecida? Para que lhe diga como conseguiu descobrir, das oito às doze horas, que Cris tinha pouca inteligência para frequentar uma escola normal. Calculou-lhe um QI de 54, o que está no limiar da imbecilidade.
Nenhum adulto consegue falar com alguém tão palerma, por isso Cris fica sem saber o que vinha na carta que o ministério enviou: que os pais demoraram demasiado tempo a enviar a autorização, que a escola do ensino especial já está cheia, e que por isso Cris tem de ir para uma escola para crianças com atrasos mentais.
No último dia de férias, chega, pela terceira vez, uma carta do ministério, onde é dito novamente que, uma vez que os pais demoraram a conceder a autorização, Cris já não pode ir à escola durante o próximo ano (suspensão da obrigatoriedade escolar, de acordo com o artigo 14 do regulamento escolar).
– Estão malucos! – grita a mãe, e o pai bebe logo de enfiada três copos de aguardente. Depois atira o copo contra a parede, e Cris tem de varrer os vidros.
– A partir de hoje vão as duas para a segunda classe, para a Sr.ª Anders, e sentam-se uma ao lado da outra, percebido? – disse a mãe na manhã seguinte.
Cris e Nenna vão para o autocarro escolar enquanto a mãe se lança para a bicicleta e voa para a escola. Quer dizer das boas ao director.
Mas o director está doente. A substituí-lo está a Sra. Anders, que até fica tonta com tantas leis e parágrafos. Diz também que a situação em que Cris se encontra foi provocada pela mãe. O que é que tem contra a escola de ensino especial da vila vizinha? Só se ouve falar bem daquela escola. Sim, sim, os edifícios são bonitos, diz a Sr. Blattsch, mãe de Cris… Já lá foi de bicicleta.
A campainha toca.
– Tenho de ir para as aulas – diz a Sr.ª Anders, que ainda acompanha a Sr.ª Blattsch pelo corredor e depois se dirige para a sala de aula. E o que vê? Cris e Nenna sentadas ao lado uma da outra, como se fossem uma só.
A Sr.ª Anders vai a correr ao recreio, mas já não vê a Sr.ª Blattsch, que saiu dali à velocidade do vento.
– Que descarada! – vocifera a Sr.ª Anders. – Deixar-me assim uma prenda destas, como se a minha turma não estivesse já suficientemente cheia. Não pense ela que a vou deixar fazer o que quer! A Cris que pegue na sacola e que vá para casa. Se o autocarro já tiver partido, que vá a pé.
A Sr.ª Anders volta a correr para a sala mas vê os olhos claros de Cris e o medo bem no fundo deles, e resolve não dizer nada. Pelo meio-dia, dez minutos antes de tocar, senta-se à secretária e escreve:
Cara Sr.ª Blattsch
Daqui em diante, deixe ficar a Cris em casa, tal como determinado pelo ministério.
O que é que a Cris vai fazer, se tiver de ficar em casa? – pergunta uma voz. Uma voz tímida e baixa. A Sr.ª Anders parece conhecê-la, já a ouviu mais vezes… – Vai brincar com garrafas vazias de aguardente? E as pessoas da aldeia, o que dirão? “Uma palerma. É tão burra, que nem a querem na escola!” Mas porque é que estás a escrever? Não lhe basta já a carta do Ministério? Ainda tens tu de te fazer importante?
Nunca na vida! Quem é que pensa numa coisa dessas?
Eu!
Eu? Quem és tu?
Prefiro antes dizer-te quem não sou. Bem, não sou essa pessoa que aceita todas as ordens do ministério. Há muito, muito tempo, antes de te tornares uma funcionária do estado, também foste uma menina indefesa e insignificante como a Cris…
Eu fui como a Cris? Nunca, podes ter a certeza. Nunca!
Não precisas de ter medo que as crianças ouçam o que te digo. Para elas sou completamente invisível e inaudível. Claro que eras uma criança esperta, se não, não tinhas chegado a professora. Mas talvez te lembres ainda daquela pequena, a segunda a contar do fim, quando se tinham de colocar por ordem de tamanho. E nas aulas de ginástica tinham de se pôr por ordem…
…lembro-me, de facto…
E quem era aquela menina esquisita e fraquinha, que na escola não se atrevia a chegar junto do professor com o lápis da lousa partido…?
…também me lembro disso…
E quem é que era tão imbecil, desculpa a palavra, que não conseguia perceber que três mais três e quatro mais cinco pedem números determinados, e não uns algarismos quaisquer à escolha?...
Deixa-me rir! Era eu!
Era eu! Era eu! Era eu! Há tanto tempo que desejo que te lembres de mim e me chames pelo nome.
Oh, já está a tocar! Não posso dar à Cris a carta para entregar à mãe. Ainda não a acabei…
Rasga-a, por favor! Não é bom escrever cartas que não sirvam para o bem das crianças. Gostarias de ter levado uma carta dessas à tua mãe? Um professor não tem de ser só inteligente, garanto-te. A inteligência não chega. Também precisa de saber sentir o que sentia quando era criança…
* *
Olá! Hoje já é o quinto dia de aulas depois das férias, se não estou em erro.
Sabes o que é a imbecilidade? Fazes ideia do que é…
E tu, fazes?
Vou mostrar-te, presta atenção!
– Cris, ora lê o que está escrito no quadro.
…
– Vou ler-te em voz alta: mamã. Mmmmmaaaammmmãããã. Que sons é que ouves?
…
Pobre idiota! Tem a idiotice estampada na cara.
Ela pensa que vai apanhar já um estalo da mamã. Apaga a palavra mamã, Maria! Usa uma palavra de que todas as crianças gostam.
Sabes alguma?
Rir.
– Cris, olha. Vou apagar mamã e vou escrever uma palavra nova: rir. Tu gostas de rir, não gostas? Rrrrir. Que sons é que ouves?
…
– Vou escrever outra palavra: fazer. Fazer rir. Soa bem, não soa? Ora diz lá tu.
…
– Vou escrever outra palavra: desenhar. Também gostas de ddeeseenhnhaarrr! Ouves os sons?
Ergueu os cantos da boca dois milímetros. Isto não é um sucesso? Deixa-a desenhar.
– Agora podes fazer um desenho bonito, Cris.
Ainda me lembro de quando aprendi a ler. Quando pela primeira vez dei conta de que não só ouvia mas também via as letras das palavras. Fiquei tão feliz! Profundamente admirada com essa descoberta! Tive o sonho mais bonito de todos os meus muitos sonhos. O meu amigo Itze e eu navegávamos pelo céu num navio de nuvens e ouvíamo-las todas cantar… O que é que a Cris está a pintar? … Uma mesa, dois bancos por baixo, o risco da boca é redondo nas duas crianças; quer dizer que estão a rir. E também copiou uma palavra do quadro: rir. Como é que a Nenna aprendeu a ler?
Por acaso foi normalmente. Só que tomei mais cuidado no início, porque já sabia o que se passava em casa.
Tomar cuidado? Será que aprender a ler pode ser perigoso?
Se se perde a ligação, sim.
Se calhar a Cris também perdeu a ligação.
Com a Cris é mesmo falta de esperteza, acabaste agora de ver com os teus próprios olhos.
Talvez seja “ligação” e burrice. Quem está sempre a apanhar estalos facilmente apanha uma má ligação, mas será que também tem de apanhar a burrice da leitura? Deixa-a brincar debaixo da mesa com a Nenna ao jogo do “Vamos ouvir as letras”. Nenna gosta da Cris e a Cris da Nenna. Aprende-se bem com alguém de quem se gosta. Deixa-me falar com a Nenna.
* *
“A mãe diz-me que não devo gastar tanto papel, porque o papel custa dinheiro. A Nenna tirou um bloco do balcão da loja para mim. É publicidade, e nisso podemos pegar, diz a Nenna. Faço desenhos pequeninos. Hoje vamos brincar a uma coisa nova, disse a Nenna. Hoje sou o bichinho do ouvido. Quando esse bichinho limpa as orelhas a alguém, essa pessoa consegue ouvir as letras das palavras.”
– Limpopo, limpopo, limpopo-te as orelhas. Ouves o p em limppo?
– Sim, ouço o p em limppo.
– E a Sr.ª Anders é boa. Não precisas de ter medo dela. Ouves o m em mmedo?
– Sim, ouço o m em mmedo.
– Portanto, não precisas de ter medo nenhum da Sr.ª Anders. Se errares, ela não se vai rir de ti. E os outros meninos também não se riem de ti, porque isso não é justo. Só o Ergon é que às vezes se ri, porque ouve mal. Mas depois também ouve da Sr.ª Anders.
– Com o Pusback riam-se sempre muito.
– Mas isso já passou – diz Nenna. – E como tu fazes uns desenhos tão bonitos, agora vou desenhar-te como se faz um p. Agora já consegues as duas coisas: ouvir e desenhar o p. Vamos brincar a sério às escolinhas. Se ouvires o que eu ouço em ppino, se ouvires sem ajuda, então és uma menina esperta.
– Pino, pino, P! P! Eu sou esperta!
* *
Quando foi a última vez que te ocupaste dela? Há quatro ou há cinco dias?
Tenho trinta e duas crianças na turma sem contar com a Cris. – disse Maria Anders. – São trinta e duas crianças com as quais tenho de me ocupar, o que, por si só, já é muito trabalho e às vezes bem difícil de levar a cabo, acredita. Não me sinto responsável pela Cris. Não estudei idiotice.
Foi por isso que pedimos ajuda à Nenna.
Pedir ajuda? Mas que palavra tão forte para este caso. Permitimos que Cris viesse para a escola. Ela porta-se bem, não perturba as aulas. Faz sarrabiscos e desenha. Sempre está melhor aqui do que se estivesse sentada em casa. Faço mais do que o que me é autorizado pelo ministério.
Não poderias ocupar-te dela só mais um pouco?
Mas como? Eu faço perguntas, ela não responde. Torno a perguntar, ponho-lhe a resposta na boca, por assim dizer. Ela continua sem responder. Quantas vezes tenho de repetir isto? Eu tenho de ver resultados, se não, um professor também não se sente motivado. E também não quero perder o meu tempo.
Será que cada funcionário público tem de se esquecer do que sentiu em criança?
Andas constantemente a lembrar-mo.
A Cris já cá está há dez dias. Em dez dias ainda não te disse uma palavra, mas o lápis dela fala com o papel. Vai até lá e dá uma olhadela.
Não vejo nada de interesse nos gatafunhos dela.
A última vez que olhaste para eles foi há cinco dias. Por favor, vai até lá outra vez…
PINO PATO
Os cantos da boca de Cris estão virados para cima. Quase sorri. Aponta com o lápis primeiro para uma palavra, depois para a outra. Os lábios abrem uma fresta.
Quer dizer-te alguma coisa, Maria. Depressa, baixa-te para perceberes…
Cris fala tão baixinho que nem na mesa do lado a ouvem.
– Se trocar este por este – diz ela batendo primeiro no A, depois no I – fica pano.
Mas isso é óptimo! É mesmo bom! Ela percebeu como funciona…
Se eu não tivesse vivido isto, disse mais tarde Maria Anders, acharia a história impossível. Uma coisa impossível como esta é o melhor que pode acontecer a um professor. Não se consegue esquecer, pensa-se e volta-se a pensar. Uma pessoa nunca se cansa de reflectir nesta história, acho eu. Na altura, falei abertamente com a Cris e com a Nenna. Expliquei-lhes qual era o problema dela, mas que ia conseguir aprender. Todas as manhãs, eu estudava uns minutos com ela, e Nenna fazia o mesmo à tarde. Foi simplesmente espantoso como Cris conseguiu aprender. Passados poucos meses já conseguia ler sozinha textos desconhecidos. Então, peguei no telefone, contactei o ministério e informei que tinha agido contra as ordens, e expliquei porquê. Disse ainda que a Cris agora já sabia ler, que aprendera com a ajuda da irmã. Meio ano mais tarde, a colega voltou a vir fazer um teste de inteligência e redigiu uma carta onde escreveu: “Cris desenvolveu uma boa técnica de leitura mas não entende nada do que lê.” Bem, este é o problema da ligação. Quando Cris sente que está a ser controlada, não abre a boca. Nem mesmo hoje. E já está com Nenna no quinto ano.
Irmela Wendt
Jutta Modler (org.)
Brücken Bauen
Wien, Herder, 1987
segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009
Objectivos para o Teste - 5º ano
Grupo I
- Interpretar um excerto de um conto;
- Conhecer as Categorias da Narrativa: narrador, personagens, acção, tempo e espaço.
- Identificar recursos expressivos: comparação e enumeração.
Grupo II
Funcionamento da Língua:
- Conhecer a organização de um texto escrito: parágrafo, período e frase;
- Identificar as classes e subclasses de palavras:nomes, verbos*, adjectivos, determinantes;
- Classificar as palavras quanto à flexão;
- Classificar sintacticamente frases.
* Verbos (regulares/Irregulares; Transitivos e Intransitivos; Conjugações - 1ª; 2ª; 3ª))
Grupo III
Produção de um texto narrativo.
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