"A maioria pensa com a sensibilidade, eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar." Fernando Pessoa
quarta-feira, 28 de janeiro de 2009
Clube Contadores de Histórias
Mozart, o menino mágico
Havia um cravo no meio do quarto e uma janela a dar para a rua. O cravo não era uma flor e sim um instrumento polido, elegante, bonito, capaz de fazer música, de encher os dias com o som suave das suas teclas brancas e negras, com a alegria dos seus acordes, das suas harmonias leves e limpas como a voz do vento.
O menino levantou-se do chão, sentou-se no banco almofadado e pousou as mãos pequeninas sobre as teclas. Que música ia nascer dos seus dedos saltitantes como pássaros contentes com a chegada da Primavera?
Atrás do menino havia um vulto e atrás do vulto uma luz igual à que cobre as telas dos pintores. O menino gostava da luz e o seu sorriso de menino feliz era já uma espécie de música a enfeitar a vida da casa.
“Amadeu”, — disse a voz atrás do menino —, “hoje tens ainda muito trabalho pela frente, dois minutos para estudar, uma longa lição para aprender.”
O menino gostava que soubessem que, para ele, tocar era uma maneira de brincar e que o cravo, o piano e o violino bem podiam tomar o lugar dos cavalos de pau, dos soldadinhos de chumbo, das máscaras de cartão.
Um dia o menino desenhou a giz um rosto no chão, uma andorinha no tapete persa, uma borboleta na tampa do cravo. Depois inventou letras gémeas dos algarismos e das notas de música e deu nomes raros às melodias que lhe esvoaçavam na cabeça, roubando-lhe o sono e o
sossego.
Os dedos do menino saltavam, nervosos, de tecla para tecla, de música para música. O vulto, atrás do menino, era familiar e meigo. Chamava-lhe Pai, queria-lhe muito. À frente, num trono alto, um homem enfeitado de ouro ouvia, atento, a música que nascia dos dedos pequenos do menino. Chamavam-lhe Imperador e era senhor de uma cidade luminosa chamada Viena. Gostou do que ouviu e disse: “Há-de ir longe, muito longe este menino”. Não se enganava, o Imperador.
O menino não gostava de castigos, de notas desafinadas, de ralhetes, de sons de trompete. Amava a doçura do cravo e a voz alta e sonante do piano. Queria tocar com os dedos pequeninos o horizonte da música. Não lhe faltava nem vontade, nem saber, nem engenho. Era um menino mágico igual aos dos sonhos e das lendas.
Um dia o menino faz as malas, guarda nelas, bem guardados, os brinquedos e as partituras, pega na mão da irmã, na mão do pai, nas rédeas do vento e lança-se na lonjura dos caminhos. Hoje Munique, amanhã Paris, depois Bruxelas e Coblenz, mais adiante Londres e Frankfurt. O menino aprende os nomes das cidades e das gentes que se deixam assombrar em salas brilhantes e grandes com o som da música que nasce, irrequieta, dos seus dedos.
“Chegou o dia”, diz o pai do menino, “de mostrares as tuas sinfonias”. O menino achava que era ainda cedo, mas gostava de obedecer à vontade do pai. Escreveu no caderno de viagem os nomes de Bach e de Haendel e da música de ambos fez companhia fiel para concertos e andanças. A música era agora o seu único brinquedo, a festa dos seus dedos pequeninos e velozes sobre as teclas brancas e negras.
Rendem-se as cidades à magia dos seus dedos que inventam trios e sinfonias como cascatas de som. Hoje Haia, amanhã Paris, depois Milão, de novo Londres e Munique.
O menino está doente e cansado. Chamam-lhe prodígio, menino-prodígio, e ele não gosta.
Prefere que lhe chamem apenas menino, ou então Wolfgang Amadeus, Amadeu para os amigos que com ele partilham a viagem destes versos.
O menino gosta de fazer amigos. Florença é uma cidade bonita, clara e cantante, com praças, igrejas e mercados. Um outro menino com dedos mágicos como os seus toca violino e gosta de brincar. Chama-se Tomás e tem olhos azuis. A música os junta, a música os separa.
Cada um segue o seu rumo, que as estradas de fazer amigos nem sempre são iguais às de fazer música.
Em Roma há quem diga: “Uma grandeza assim só em Miguel Angelo”. O menino não sabe quem seja, se é músico ou pintor, mas pressente que é alguém tão alto e brilhante como as catedrais do mundo na hora fantástica em que todos os sinos chamam para a festa. O menino
tem nos ouvidos o eco imenso dos aplausos. Que lhe dêem, doravante, tudo menos silêncio e escuridão.
O menino não gosta de usar cabeleira postiça, casaca bordada a ouro, pó na face. Mas que há-de fazer? Toca nos salões, nas salas de concerto para gente rica e exigente e só lhe resta seguir a moda, respeitar o gosto de quem manda. Ninguém espera que ria, que brinque, que salte e que corra. Mas ele, às vezes, lembra-se que ainda é menino e em vez de música deixa uma pirueta, uma careta na lembrança de cardeais e de duques.
O menino também sabe cantar com uma voz fina e perfeita que enche as capelas e os salões. Canta um Miserere e Roma fica de joelhos a adorar nele uma santidade que não tem, uma realeza que não quer ter. Ele é somente um menino, um menino de músicas mágicas, mas ainda e sempre um menino.
Às vezes o menino sonha que tem altura de estátua, largura de rio, tamanho de onda.
Depois acorda em sobressalto e sobra-lhe do sonho que teve uma réstia de som, um farrapo de música, um ímpeto de sinfonia. O menino descobre que cresce ao ritmo dos sonhos que de noite e de dia o visitam, à velocidade luminosa dos astros.
O menino acrescenta palavras à música, dá voz a personagens, dá corpo a reis e a mitos, dá nome a cidades e a séculos. Tem catorze anos e escreve uma ópera. Depois escreve uma cantata para casar um arquiduque. Dá nomes às óperas: Mitridate, Lúcio Silla, Finta Giardiniera. O mundo é um tapete de espantos e vénias que se desenrola a seus pés.
O triunfo é um pássaro que lhe cabe na concha da mão. Mas apetece-lhe ser sempre menino. Para sempre menino, como se pudesse ser esse o seu destino.
O menino está em Paris, mas pertence a todas as cidades que amam a sua música, que cantam na voz das suas óperas e cantatas. Paris abre-lhe portas que a tristeza se apressa a fechar. Parte a mãe para um lugar aonde não chega, nunca chegará, o som da sua música. O menino está só e infeliz. Sente-se indefeso como todos os meninos. Volta a casa e chora, dobrado como um menino triste, no colo do pai que o consola.
O menino sonha com uma flauta que seja mágica, com uma música que seja diferente.
Usa a língua italiana nas primeiras óperas e a língua alemã, a que entra no que diz e no que escreve, para escrever outras a que chama: Flauta Mágica, O Rapto do Serralho. Todas lhe exaltam a mão esquerda, a mágica mão que dança sobre as teclas como uma bailarina com véus de sonho e de brisa.
Há um vulto ao lado do menino, que não é o de seu pai, nem o de um anjo protector. É um vulto que se escreve com nome de música. Chama-se Joseph Hayden e diz: “Compositor maior, senhores, nunca eu vi ou ouvi”. O menino torna-se gigante na admiração e no afecto dos que o
ouvem tocar. É um menino gigante com um riso alegre e sonoro como é sempre o riso dos meninos quando a música os faz felizes.
O menino é pálido, magro, doente. Mesmo quando a febre e a fadiga o levam à cama, não deixa de compor, de escrever, de inventar sinfonias e concertos, de mandar cartas, de endereçar mensagens. Não sabe nem quer parar. Não é capaz. Há nos seus olhos uma luz que não se apaga e que o faz ter sempre rosto de menino, idade de menino, gestos de quem ainda deixou muito para brincar.
As mãos do menino cantam, dançam, inventam. São mágicas como o riso do menino.
Quando se erguem no ar, fazem crescer a força da música que acorda as cidades, de Salzburgo, onde nasceu, até Milão, Paris ou Londres, que não se cansam de dizer: “Como tu nunca vimos igual”. Mas o menino sente que o elogio é coisa incómoda, de feição só para gente idosa. Dá uma gargalhada e nasce uma nova sinfonia.
As mãos do menino esbanjam o dinheiro que ganham com pequenas e grandes coisas, com festas e com surpresas, presentes e brindes. O menino é generoso e gosta de ser amado.
Só se sente feliz quando, à sua beira, os outros também são felizes. É essa, afinal, a lei de ouro da sua música.
O menino sabe que a harmonia do mundo começa e acaba na sua música. Fora dela é a desordem, a tristeza, a doença. Façam-lhe tudo menos estragar, ofuscar a luz da sua música.
Vê-lo-ão em fúria, com mãos ameaçadoras e palavras altas e graves, se lhe maltratarem uma sinfonia, uma cantata, uma ópera.
O menino esquece-se do tempo. A música acena-lhe de dentro da noite, chama alto por ele. E ele perde o sentido das horas, deixa escapar por entre os dedos o fio do tempo. Compõe, compõe sempre, com uma pressa só igual à de quem corre contra o tempo por saber que já não tem tempo. Dorme sem ter horas, escreve sem ter fome ou sede, inventa-se e reinventa-se no muito que faz como se lhe restassem poucos dias para o fazer, para o sonhar.
Engana-se quem o festeja, quem o quer adulado e adorado. Para ele só a música conta e a ternura dos que ama, a da mulher, do pai, dos amigos. A música não é uma casa, nem uma estrada, nem uma lua acesa a medo no escuro da noite. A música é um universo povoado por cometas, planetas e sóis de mil e uma cores. E ele é o único habitante capaz de pôr ordem nesse universo, de lhe dar harmonia, sentido e voz.
Há quem não goste que o menino toque de igual modo para os que tudo têm e para os que são donos de nada. Para uns querem brilho, para outros silêncio apenas. Mas o menino não faz distinção entre uns e outros. Para ele há os que sabem e os que não sabem ouvir. No meio está uma espiral de sons, de notas mágicas, que cresce com os sonhos do menino.
O menino tem já a idade das sinfonias e das óperas que compôs. Cresceu, mas não deixou de ser menino. Acorda quando o dia acorda e passeia pela casa arejada e branca as ideias novas, as melodias cantantes, os fragmentos de música que depois vão salpicar de notas as partituras, os cadernos. Nenhum dia é igual ao outro dia. Sucedem-se, diferentes, porque a música que os habita também nunca se repete.
Um dia, um rei diz ao menino: “Esta ópera é muito bela, mas tem notas a mais”. O menino, que é rei e senhor da sua música, fica sisudo e responde: “Só tem as notas que são precisas”. Aos reis, aos imperadores, aos arquiduques só se responde quando eles pedem uma resposta. Mas o menino, que também é rei, à sua maneira, responde com as palavras que acha justas e acertadas. Não precisa de coroa nem de trono.
Há um muro de inveja levantado à volta do menino. Mas ele não se importa porque sabe que há uma luz que nada nem ninguém impedirá de entrar na sua música. Cobiçam-lhe a alegria, o génio, o gosto de ser menino, o riso e o prazer de ser livre. Mas ele não se importa porque sabe que há na sua música uma voz a que nenhuma outra voz se pode sobrepor, por ser única e imensa.
O menino nunca abandona aqueles que ama. A música é a ponte que os liga. Constança, sua mulher, adoece e o menino, que a vida tornou crescido e atento a tudo, toca para ela, para que a febre baixe e a dor não lhe roube o sono. “Dorme, Constança, dorme porque há uma música bonita que traz sonhos nas asas e os poisa sobre as tuas pálpebras”.
A doença começa a lançar um véu de tons sombrios sobre os olhos do menino, que nunca pára de tocar, nem para dormir nem para comer. O menino sente que uma grande pressa lhe magoa o peito e lhe agita os dedos. Todas as horas se tornam apenas instantes quando tem de compor. Todos os dias se tornam minutos quando tem de tocar. Uma vida inteira, mesmo longa, seria breve para toda a música que tem dentro da cabeça.
Hoje um acto de ópera, amanhã um andamento de sinfonia ou de concerto, uma cantata, um divertimento. O menino sente que a febre lhe arde nos olhos e que a noite lhe adormece nos dedos. Tem pressa, cada vez mais pressa. Chegam amigos, mas não está para eles; quer estar só. Só, com a música toda que tem para escrever.
Um homem visita o menino sem deixar o nome. Fala de alguém que partiu, da pena que sente, da tristeza que o verga. Quer uma música que saiba dizer tudo isso e muito mais, que diga a sombra e a mágoa. A encomenda está feita, o preço combinado: cem ducados. Ficará pronto, promete o menino, em quatro semanas. Com o Requiem, que é assim que a obra se chama, cresce, veloz, a tristeza do menino.
Um pássaro vestido de névoa pousa no parapeito da janela do quarto do menino. Anuncia dias sem luz, horas magoadas e sombrias. E o menino trabalha, trabalha sempre, no desamparo da cama desfeita, da comida entornada, da febre a subir, do corpo a doer. Tem pressa, muita pressa, mas o tempo não chega para cumprir a promessa.
O pássaro está pousado dentro do sono do menino a vigiar-lhe os sonhos, a seguir-lhe as ideias, a afugentar-lhe a febre com um constante bater de asas. A cabeça do menino está cheia de música. Entram e saem do quarto aqueles que ama. “Está tão doente o menino”, lamentam-se. Ele não os pode ouvir, que os seus ouvidos são conchas, búzios e casulos onde a música não cessa nunca de tocar.
O menino adormece e acorda, desmaia e volta à razão. Deixou de poder distinguir a noite do dia, a sombra da luz. E a pressa, essa, nunca abranda. “Tenho o Requiem para acabar, não faltarei à promessa”. Mas falta sem querer faltar. Quando vêm buscar a obra, o menino fecha
os olhos e já não está para responder, seja a quem for.
É mais triste que a tristeza o dia da despedida. O menino vai deitado com tão pouca companhia: as lágrimas de quem sempre soube amá-lo, a sinfonia grave da chuva, mais a cantata do vento, mais a ópera do silêncio. Há um pássaro pousado no poleiro alto de um cedro a dizer adeus, baixinho, com um leve bater de asas. “Adeus, menino, adeus que saudades já temos de ti...”
No patamar de uma nuvem está um cravo aberto, um piano com teclas de vento. O menino senta-se e toca e as estrelas em volta começam a cantar. Passa um cometa e diz: “Bonita música essa, Amadeu. Passa um meteoro e murmura: “Ensina-me também a cantar, Amadeu”. Cá em baixo, na terra, enfeita-se o silêncio com o eco de mil coros. O menino guarda a partitura e viaja sobre um raio de luz até ao planeta distante onde só a música pode ser rainha.
Está um pássaro pousado nas teclas de um piano, está um pássaro a cantar enquanto a noite dorme. O menino brinca com a lua, veste casaca bordada a ouro e tem cabelos feitos com fios de prata.
Voltou a ter a idade saltitante dos brinquedos e dos sonhos. O seu riso é do tamanho da alegria do mundo. Tudo em redor se cala só para o ouvir tocar, com o encantamento imenso que apenas a magia é capaz de explicar. Até já, até sempre, Amadeu!
José Jorge Letria
Mozart, o menino mágico
Porto, Ambar, 2006
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