terça-feira, 28 de abril de 2009

Clube Contadores de Histórias


A Rapariga e o Sonho




Era uma rapariga. E sonhava.
Uma rapariguinha muito ligada às flores, às folhas e tão presa à terra, como se dela tivesse nascido, como uma árvore.
Também se sentia muito prisioneira do sol, da lua e das estrelas, que imaginava tão tristes por estarem longe e sozinhas, que se dobravam nas águas do laguinho do jardim, onde as via reflectidas.
De íntimo fantasista e liberto, era do sol, da lua e das estrelas donde imaginava que tinham “chovido” uns seres invisíveis com quem brincava.
E as brincadeiras sucediam-se. Libertavam-na do seu peso e sustentavam-na no ar, quer com vara mágica, quer com um simples dedo.
E às vezes, faziam ainda descer sobre ela, ignoradas, poeiras e orvalhos astrais.
E tudo aquilo era maravilhoso, pois adorava subir pelas paredes do ar ou dançar no vento. E, como aqueles serzinhos não eram identificados pelos que a rodeavam, contava-lhes segredos só dela sabidos, fazendo florescer a amizade e entrelaçando os corações num abraço.
Tratava-os como uma mãezinha a uns filhos muito amados e contava--lhes histórias inventadas por ela ou deixava um a tomar conta de uma casinha, a fingir, sem telhado.
Outras vezes jogava às escondidas com eles, no jardim, ou vigiava-os, enquanto nadavam no laguinho-oceano, sempre à vista de terra e com a margem longa de ramos, benfazejos, para poderem agarrar-se e não se afogarem.
Também os deixava tomar conta dos seus castelos de puzzles.
Mas o que mais gostava era de provar-lhes t-shirts variadas ou tentar tirar-lhes medidas para trajes mágicos. Sim, porque os vestidos dela também eram como os das princesas de “Era uma vez...”, não apenas da cor do tempo, mas acesos por fogos cósmicos, cheios de corações a deitar raízes, de números fugidos da tabuada, espirais galácticas, malmequeres, margaridinhas entre caminhos concha de caracol, flores-aranhas, morangos verde-roxo, cravos alilasados, bocas-beijos, que sei eu.
Também amava brincar com coisas vivas e gostava muito de animais, encantados e encantadores.
Assim era tu cá tu lá com o bichano que, pasmado, a via ser capaz de fazer o pino não sobre a cabeça, mas nas perninhas curtas das tranças.
Às vezes, de repente e sem porquê, ficava triste e silenciosa. Então, o gato e as criaturinhas invisíveis conversavam entre si. O gato, amador de mimos e de festas sobre o pêlo, sentia-se muito abandonado, e, insistente, interrogava um dos serzinhos imaginados, que, cheio de paciência e enigmaticamente, lhe explicava que ela estava a crescer por dentro e sozinha.
Outras vezes, demorava muito tempo a arranjar-se, assistida pela sua aia, uma medusa-lunar que lhe tomava conta de uma joaninha do quintal, jóia-viva, com que fazia gosto de enfeitar-se, depois de vestida atrás da cortina de flores, trepadeiras-trevo.
Estava a tornar-se tão íntima de si e tão madura que crescia pelo sonho. Era isso. Mesmo no seu vestidinho andadeiro e de todos os dias, às pintas, como o de qualquer adolescente, e as suas trancinhas, via-se que tinha sofrido uma transformação.
Estava prestes a ser a Bela e a entrar no Jardim do Amor, para procurar, através do labirinto, um coração onde o seu pudesse reflectir-se e reconhecer-se.


Luísa Dacosta,Julho de 2001


Luísa Dacosta
A rapariga e o Sonho
Porto, Edições Asa, 2006

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Clube Contadores de Histórias


A festa de Carnaval



— Porque é que estás a chorar, Susi? — pergunta Jacob.
— Porque a Catarina foi horrível para mim — soluça Susi.
A coroazinha de papel dourado que tem na cabeça está torta. O rímel escorreu-lhe das pestanas para a cara, e os olhos estão vermelhos de chorar.
Jacob tem vontade de dizer: “Tu às vezes também és má para a Catarina.” Mas pensa melhor e pergunta.
— Mas o que é que a Cati te fez?
— Riu-se de mim — choraminga Susi — e disse: “Isso é que é um vestido de princesa? Mais parece uma camisa de dormir melhorzinha!”
Jacob olha para o vestido de Susi. É comprido e branco, não muito largo, e enfeitado com rosas de papel de seda.
Catarina também está disfarçada de princesa. Tem uma saia de roda com muitos folhos na cintura. “Catarina parece mais uma princesa do que a Susi”, pensa Jacob.
— Tu também achas que isto é uma camisa de dormir, não é? — diz Susi com ar triste.
— De camisas de dormir eu não percebo muito — responde Jacob. — Mas podias ser a princesa de “A princesa e a ervilha”. Assim combina tudo: a camisa de dormir e a coroa.
Susi pára de chorar.
Tu és muito simpático, Jacob, mas a Catarina é má e eu não entendo como é que ela é tua amiga.
— Convido-te para um sorvete de laranja — diz Jacob — e danço contigo. Mas tens de prometer-me que deixas de estar zangada com a Catarina. Ela não estava a falar a sério. Se calhar, tinha um pouquinho de inveja de ti porque tu hoje podes usar rímel e ela não.
— Se calhar é por isso — diz Susi, limpando o rímel da cara.
— Mas agora já estás outra vez bonita — diz Jacob.
Na pista de dança encontram-se com Catarina.
— Olá, Catarina! — diz Susi amavelmente.
Tradução e adaptação
Lene Mayer-Skumanz (org.)
Jakob und Katharina
Wien, Herder Verlag, 1986