"A maioria pensa com a sensibilidade, eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar." Fernando Pessoa
domingo, 22 de fevereiro de 2009
Clube Contadores de Histórias
A Cidade dos Resmungos
Era uma vez um lugar chamado Cidade dos Resmungos, onde todos resmungavam, resmungavam, resmungavam. No Verão, resmungavam que estava muito quente. No Inverno, que estava muito frio. Quando chovia, as crianças choramingavam porque não podiam sair. Quando fazia sol, reclamavam que não tinham o que fazer. Os vizinhos queixavam-se uns dos outros, os pais queixavam-se dos filhos, os irmãos das irmãs. Todos tinham um problema, e todos reclamavam que alguém deveria fazer alguma coisa.
Um dia chegou à cidade um vendedor ambulante carregando um enorme cesto às costas. Ao perceber toda aquela inquietação e choradeira, pôs o cesto no chão e gritou:
— Ó cidadãos deste belo lugar! Os campos estão abarrotados de trigo, os pomares carregados de frutas. As cordilheiras são cobertas de florestas espessas, e os vales banhados por rios profundos. Jamais vi um lugar abençoado com tantos benefícios e tamanha abundância. Por quê tanta insatisfação? Aproximem-se, e eu mostrar-lhes-ei o caminho para a felicidade.
Ora, a camisa do vendedor ambulante estava rasgada e puída. Havia remendos nas calças e buracos nos sapatos. As pessoas riram ao pensar que alguém como ele pudesse mostrar-lhes como ser feliz. Mas, enquanto riam, ele puxou uma corda comprida do cesto e esticou-a entre dois postes na praça da cidade.
Então, segurando o cesto diante de si, gritou:
— Povo desta cidade! Aqueles que estiverem insatisfeitos escrevam os seus problemas num pedaço de papel e ponham-no dentro deste cesto. Trocarei os vossos problemas por felicidade!
A multidão aglomerou-se ao seu redor. Ninguém hesitou diante da oportunidade de se livrar dos problemas. Todos os homens, mulheres e crianças da vila rabiscaram a sua queixa num pedaço de papel e lançaram-no no cesto.
Observaram o vendedor que pegava em cada problema e o pendurava na corda.
Quando terminou, havia problemas a tremularem em cada polegada da corda, de um extremo a outro. Disse então:
— Agora cada um de vocês deve retirar desta linha mágica o menor problema que puder encontrar.
Todos correram para examinar os problemas. Procuraram, manusearam os pedaços de papel e ponderaram, cada qual tentando escolher o menor problema. Ao fim de algum tempo, a corda estava vazia.
Eis que cada um segurava o mesmíssimo problema que tinha colocado no cesto. Cada pessoa havia escolhido o seu próprio problema, achando ser ele o menor de todos.
Daí por diante, o povo daquela cidade deixou de resmungar constantemente. E sempre que alguém sentia o desejo de resmungar ou de reclamar, pensava no vendedor e na sua corda mágica.
William J. Bennett
O Livro das Virtudes II
Editora Nova Fronteira, 1996
(adaptação)
quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009
Informação - Exame LP 2008-2009
Encontram-se disponíveis no GAVE as informações relativas ao Exame Nacional de LP que se irá realizar no corrente ano lectivo.
http://www.gave.min-edu.pt/np3content/?newsId=218&fileName=IE_Linguaportuguesa_22_09.pdf
http://www.gave.min-edu.pt/np3content/?newsId=218&fileName=IE_Linguaportuguesa_22_09.pdf
terça-feira, 10 de fevereiro de 2009
quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009
Clube Contadores de Histórias
A história de Cristina
Cristina é uma menina insignificante e apagada. Faz lembrar margaridas na berma do caminho, calcadas por quem passa – diz-me a Sr.ª Anders, de quem ouvi esta história.
– A Cris já tem seis anos e tem de ir para a escola – diz a mãe.
Mas a delegada de saúde disse que a Cris ainda tinha de ficar mais um ano em casa, a brincar. Cris gatinha para debaixo da mesa, para junto de Nenna, a irmã de quatro anos, e aí brincam as duas. Cris é a Cris, e Nenna faz de mãe.
– Tens de ir para a escola! – diz a mãe. E só de pensar que Cris não pode ir para a escola, bebe imediatamente uns goles da garrafa.
Um ano passa depressa. Cris já tem sete anos.
– Agora somos obrigados a aceitá-la – diz-lhe a delegada de saúde.
Cris vai então para a classe do Sr. Pusback, que é muito engraçado e de quem as crianças gostam muito. Um ano depois, na ficha de avaliação vem registado que Cris fez um primeiro ano satisfatório e que, por isso, passa de ano. Vai agora para a segunda classe, e Nenna entra para a primeira. Passado meio ano, o professor informa o director que Cris não consegue ler.
Cris vai fazer nove anos. E quem tem nove anos e não sabe ler, tem de ir para uma escola de crianças com problemas de aprendizagem. Uma senhora que Cris não conhece vem à escola, fica sozinha com ela numa sala, faz-lhe muitas perguntas, manda Cris fazer diversas coisas, trabalhar com pequenas peças de madeira, observar imagens, desenhar linhas, pintar. Durante a manhã inteira, das oito às doze horas. A senhora faz um intervalo para fumar e Cris tem autorização para ir ao quarto de banho e comer o pão com manteiga, mas Cris não trouxe pão para comer.
Dias depois, chega uma carta com o carimbo do ministério.
– És tão palerma! – grita-lhe a mãe. Cris apanha um par de estalos que a atiram ao chão. Gatinha imediatamente com Nenna para debaixo da mesa. E brincam. Cris é Cris, e Nenna faz de senhora desconhecida que foi à escola e fuma.
Tempo depois, saem as avaliações. Nenna passa de ano, mas Cris não.
– Espera que já lhes digo! – exclamou a mãe. Cris não sabe por quem deve esperar. Pelo Sr. Pusbach, talvez? Para que ele lhe explique por que é que ela não conseguiu aprender a ler? Mas isso nem ele próprio sabe! Todas as outras crianças aprenderam a ler… Ou será que deve esperar pela senhora desconhecida? Para que lhe diga como conseguiu descobrir, das oito às doze horas, que Cris tinha pouca inteligência para frequentar uma escola normal. Calculou-lhe um QI de 54, o que está no limiar da imbecilidade.
Nenhum adulto consegue falar com alguém tão palerma, por isso Cris fica sem saber o que vinha na carta que o ministério enviou: que os pais demoraram demasiado tempo a enviar a autorização, que a escola do ensino especial já está cheia, e que por isso Cris tem de ir para uma escola para crianças com atrasos mentais.
No último dia de férias, chega, pela terceira vez, uma carta do ministério, onde é dito novamente que, uma vez que os pais demoraram a conceder a autorização, Cris já não pode ir à escola durante o próximo ano (suspensão da obrigatoriedade escolar, de acordo com o artigo 14 do regulamento escolar).
– Estão malucos! – grita a mãe, e o pai bebe logo de enfiada três copos de aguardente. Depois atira o copo contra a parede, e Cris tem de varrer os vidros.
– A partir de hoje vão as duas para a segunda classe, para a Sr.ª Anders, e sentam-se uma ao lado da outra, percebido? – disse a mãe na manhã seguinte.
Cris e Nenna vão para o autocarro escolar enquanto a mãe se lança para a bicicleta e voa para a escola. Quer dizer das boas ao director.
Mas o director está doente. A substituí-lo está a Sra. Anders, que até fica tonta com tantas leis e parágrafos. Diz também que a situação em que Cris se encontra foi provocada pela mãe. O que é que tem contra a escola de ensino especial da vila vizinha? Só se ouve falar bem daquela escola. Sim, sim, os edifícios são bonitos, diz a Sr. Blattsch, mãe de Cris… Já lá foi de bicicleta.
A campainha toca.
– Tenho de ir para as aulas – diz a Sr.ª Anders, que ainda acompanha a Sr.ª Blattsch pelo corredor e depois se dirige para a sala de aula. E o que vê? Cris e Nenna sentadas ao lado uma da outra, como se fossem uma só.
A Sr.ª Anders vai a correr ao recreio, mas já não vê a Sr.ª Blattsch, que saiu dali à velocidade do vento.
– Que descarada! – vocifera a Sr.ª Anders. – Deixar-me assim uma prenda destas, como se a minha turma não estivesse já suficientemente cheia. Não pense ela que a vou deixar fazer o que quer! A Cris que pegue na sacola e que vá para casa. Se o autocarro já tiver partido, que vá a pé.
A Sr.ª Anders volta a correr para a sala mas vê os olhos claros de Cris e o medo bem no fundo deles, e resolve não dizer nada. Pelo meio-dia, dez minutos antes de tocar, senta-se à secretária e escreve:
Cara Sr.ª Blattsch
Daqui em diante, deixe ficar a Cris em casa, tal como determinado pelo ministério.
O que é que a Cris vai fazer, se tiver de ficar em casa? – pergunta uma voz. Uma voz tímida e baixa. A Sr.ª Anders parece conhecê-la, já a ouviu mais vezes… – Vai brincar com garrafas vazias de aguardente? E as pessoas da aldeia, o que dirão? “Uma palerma. É tão burra, que nem a querem na escola!” Mas porque é que estás a escrever? Não lhe basta já a carta do Ministério? Ainda tens tu de te fazer importante?
Nunca na vida! Quem é que pensa numa coisa dessas?
Eu!
Eu? Quem és tu?
Prefiro antes dizer-te quem não sou. Bem, não sou essa pessoa que aceita todas as ordens do ministério. Há muito, muito tempo, antes de te tornares uma funcionária do estado, também foste uma menina indefesa e insignificante como a Cris…
Eu fui como a Cris? Nunca, podes ter a certeza. Nunca!
Não precisas de ter medo que as crianças ouçam o que te digo. Para elas sou completamente invisível e inaudível. Claro que eras uma criança esperta, se não, não tinhas chegado a professora. Mas talvez te lembres ainda daquela pequena, a segunda a contar do fim, quando se tinham de colocar por ordem de tamanho. E nas aulas de ginástica tinham de se pôr por ordem…
…lembro-me, de facto…
E quem era aquela menina esquisita e fraquinha, que na escola não se atrevia a chegar junto do professor com o lápis da lousa partido…?
…também me lembro disso…
E quem é que era tão imbecil, desculpa a palavra, que não conseguia perceber que três mais três e quatro mais cinco pedem números determinados, e não uns algarismos quaisquer à escolha?...
Deixa-me rir! Era eu!
Era eu! Era eu! Era eu! Há tanto tempo que desejo que te lembres de mim e me chames pelo nome.
Oh, já está a tocar! Não posso dar à Cris a carta para entregar à mãe. Ainda não a acabei…
Rasga-a, por favor! Não é bom escrever cartas que não sirvam para o bem das crianças. Gostarias de ter levado uma carta dessas à tua mãe? Um professor não tem de ser só inteligente, garanto-te. A inteligência não chega. Também precisa de saber sentir o que sentia quando era criança…
* *
Olá! Hoje já é o quinto dia de aulas depois das férias, se não estou em erro.
Sabes o que é a imbecilidade? Fazes ideia do que é…
E tu, fazes?
Vou mostrar-te, presta atenção!
– Cris, ora lê o que está escrito no quadro.
…
– Vou ler-te em voz alta: mamã. Mmmmmaaaammmmãããã. Que sons é que ouves?
…
Pobre idiota! Tem a idiotice estampada na cara.
Ela pensa que vai apanhar já um estalo da mamã. Apaga a palavra mamã, Maria! Usa uma palavra de que todas as crianças gostam.
Sabes alguma?
Rir.
– Cris, olha. Vou apagar mamã e vou escrever uma palavra nova: rir. Tu gostas de rir, não gostas? Rrrrir. Que sons é que ouves?
…
– Vou escrever outra palavra: fazer. Fazer rir. Soa bem, não soa? Ora diz lá tu.
…
– Vou escrever outra palavra: desenhar. Também gostas de ddeeseenhnhaarrr! Ouves os sons?
Ergueu os cantos da boca dois milímetros. Isto não é um sucesso? Deixa-a desenhar.
– Agora podes fazer um desenho bonito, Cris.
Ainda me lembro de quando aprendi a ler. Quando pela primeira vez dei conta de que não só ouvia mas também via as letras das palavras. Fiquei tão feliz! Profundamente admirada com essa descoberta! Tive o sonho mais bonito de todos os meus muitos sonhos. O meu amigo Itze e eu navegávamos pelo céu num navio de nuvens e ouvíamo-las todas cantar… O que é que a Cris está a pintar? … Uma mesa, dois bancos por baixo, o risco da boca é redondo nas duas crianças; quer dizer que estão a rir. E também copiou uma palavra do quadro: rir. Como é que a Nenna aprendeu a ler?
Por acaso foi normalmente. Só que tomei mais cuidado no início, porque já sabia o que se passava em casa.
Tomar cuidado? Será que aprender a ler pode ser perigoso?
Se se perde a ligação, sim.
Se calhar a Cris também perdeu a ligação.
Com a Cris é mesmo falta de esperteza, acabaste agora de ver com os teus próprios olhos.
Talvez seja “ligação” e burrice. Quem está sempre a apanhar estalos facilmente apanha uma má ligação, mas será que também tem de apanhar a burrice da leitura? Deixa-a brincar debaixo da mesa com a Nenna ao jogo do “Vamos ouvir as letras”. Nenna gosta da Cris e a Cris da Nenna. Aprende-se bem com alguém de quem se gosta. Deixa-me falar com a Nenna.
* *
“A mãe diz-me que não devo gastar tanto papel, porque o papel custa dinheiro. A Nenna tirou um bloco do balcão da loja para mim. É publicidade, e nisso podemos pegar, diz a Nenna. Faço desenhos pequeninos. Hoje vamos brincar a uma coisa nova, disse a Nenna. Hoje sou o bichinho do ouvido. Quando esse bichinho limpa as orelhas a alguém, essa pessoa consegue ouvir as letras das palavras.”
– Limpopo, limpopo, limpopo-te as orelhas. Ouves o p em limppo?
– Sim, ouço o p em limppo.
– E a Sr.ª Anders é boa. Não precisas de ter medo dela. Ouves o m em mmedo?
– Sim, ouço o m em mmedo.
– Portanto, não precisas de ter medo nenhum da Sr.ª Anders. Se errares, ela não se vai rir de ti. E os outros meninos também não se riem de ti, porque isso não é justo. Só o Ergon é que às vezes se ri, porque ouve mal. Mas depois também ouve da Sr.ª Anders.
– Com o Pusback riam-se sempre muito.
– Mas isso já passou – diz Nenna. – E como tu fazes uns desenhos tão bonitos, agora vou desenhar-te como se faz um p. Agora já consegues as duas coisas: ouvir e desenhar o p. Vamos brincar a sério às escolinhas. Se ouvires o que eu ouço em ppino, se ouvires sem ajuda, então és uma menina esperta.
– Pino, pino, P! P! Eu sou esperta!
* *
Quando foi a última vez que te ocupaste dela? Há quatro ou há cinco dias?
Tenho trinta e duas crianças na turma sem contar com a Cris. – disse Maria Anders. – São trinta e duas crianças com as quais tenho de me ocupar, o que, por si só, já é muito trabalho e às vezes bem difícil de levar a cabo, acredita. Não me sinto responsável pela Cris. Não estudei idiotice.
Foi por isso que pedimos ajuda à Nenna.
Pedir ajuda? Mas que palavra tão forte para este caso. Permitimos que Cris viesse para a escola. Ela porta-se bem, não perturba as aulas. Faz sarrabiscos e desenha. Sempre está melhor aqui do que se estivesse sentada em casa. Faço mais do que o que me é autorizado pelo ministério.
Não poderias ocupar-te dela só mais um pouco?
Mas como? Eu faço perguntas, ela não responde. Torno a perguntar, ponho-lhe a resposta na boca, por assim dizer. Ela continua sem responder. Quantas vezes tenho de repetir isto? Eu tenho de ver resultados, se não, um professor também não se sente motivado. E também não quero perder o meu tempo.
Será que cada funcionário público tem de se esquecer do que sentiu em criança?
Andas constantemente a lembrar-mo.
A Cris já cá está há dez dias. Em dez dias ainda não te disse uma palavra, mas o lápis dela fala com o papel. Vai até lá e dá uma olhadela.
Não vejo nada de interesse nos gatafunhos dela.
A última vez que olhaste para eles foi há cinco dias. Por favor, vai até lá outra vez…
PINO PATO
Os cantos da boca de Cris estão virados para cima. Quase sorri. Aponta com o lápis primeiro para uma palavra, depois para a outra. Os lábios abrem uma fresta.
Quer dizer-te alguma coisa, Maria. Depressa, baixa-te para perceberes…
Cris fala tão baixinho que nem na mesa do lado a ouvem.
– Se trocar este por este – diz ela batendo primeiro no A, depois no I – fica pano.
Mas isso é óptimo! É mesmo bom! Ela percebeu como funciona…
Se eu não tivesse vivido isto, disse mais tarde Maria Anders, acharia a história impossível. Uma coisa impossível como esta é o melhor que pode acontecer a um professor. Não se consegue esquecer, pensa-se e volta-se a pensar. Uma pessoa nunca se cansa de reflectir nesta história, acho eu. Na altura, falei abertamente com a Cris e com a Nenna. Expliquei-lhes qual era o problema dela, mas que ia conseguir aprender. Todas as manhãs, eu estudava uns minutos com ela, e Nenna fazia o mesmo à tarde. Foi simplesmente espantoso como Cris conseguiu aprender. Passados poucos meses já conseguia ler sozinha textos desconhecidos. Então, peguei no telefone, contactei o ministério e informei que tinha agido contra as ordens, e expliquei porquê. Disse ainda que a Cris agora já sabia ler, que aprendera com a ajuda da irmã. Meio ano mais tarde, a colega voltou a vir fazer um teste de inteligência e redigiu uma carta onde escreveu: “Cris desenvolveu uma boa técnica de leitura mas não entende nada do que lê.” Bem, este é o problema da ligação. Quando Cris sente que está a ser controlada, não abre a boca. Nem mesmo hoje. E já está com Nenna no quinto ano.
Irmela Wendt
Jutta Modler (org.)
Brücken Bauen
Wien, Herder, 1987
Cristina é uma menina insignificante e apagada. Faz lembrar margaridas na berma do caminho, calcadas por quem passa – diz-me a Sr.ª Anders, de quem ouvi esta história.
– A Cris já tem seis anos e tem de ir para a escola – diz a mãe.
Mas a delegada de saúde disse que a Cris ainda tinha de ficar mais um ano em casa, a brincar. Cris gatinha para debaixo da mesa, para junto de Nenna, a irmã de quatro anos, e aí brincam as duas. Cris é a Cris, e Nenna faz de mãe.
– Tens de ir para a escola! – diz a mãe. E só de pensar que Cris não pode ir para a escola, bebe imediatamente uns goles da garrafa.
Um ano passa depressa. Cris já tem sete anos.
– Agora somos obrigados a aceitá-la – diz-lhe a delegada de saúde.
Cris vai então para a classe do Sr. Pusback, que é muito engraçado e de quem as crianças gostam muito. Um ano depois, na ficha de avaliação vem registado que Cris fez um primeiro ano satisfatório e que, por isso, passa de ano. Vai agora para a segunda classe, e Nenna entra para a primeira. Passado meio ano, o professor informa o director que Cris não consegue ler.
Cris vai fazer nove anos. E quem tem nove anos e não sabe ler, tem de ir para uma escola de crianças com problemas de aprendizagem. Uma senhora que Cris não conhece vem à escola, fica sozinha com ela numa sala, faz-lhe muitas perguntas, manda Cris fazer diversas coisas, trabalhar com pequenas peças de madeira, observar imagens, desenhar linhas, pintar. Durante a manhã inteira, das oito às doze horas. A senhora faz um intervalo para fumar e Cris tem autorização para ir ao quarto de banho e comer o pão com manteiga, mas Cris não trouxe pão para comer.
Dias depois, chega uma carta com o carimbo do ministério.
– És tão palerma! – grita-lhe a mãe. Cris apanha um par de estalos que a atiram ao chão. Gatinha imediatamente com Nenna para debaixo da mesa. E brincam. Cris é Cris, e Nenna faz de senhora desconhecida que foi à escola e fuma.
Tempo depois, saem as avaliações. Nenna passa de ano, mas Cris não.
– Espera que já lhes digo! – exclamou a mãe. Cris não sabe por quem deve esperar. Pelo Sr. Pusbach, talvez? Para que ele lhe explique por que é que ela não conseguiu aprender a ler? Mas isso nem ele próprio sabe! Todas as outras crianças aprenderam a ler… Ou será que deve esperar pela senhora desconhecida? Para que lhe diga como conseguiu descobrir, das oito às doze horas, que Cris tinha pouca inteligência para frequentar uma escola normal. Calculou-lhe um QI de 54, o que está no limiar da imbecilidade.
Nenhum adulto consegue falar com alguém tão palerma, por isso Cris fica sem saber o que vinha na carta que o ministério enviou: que os pais demoraram demasiado tempo a enviar a autorização, que a escola do ensino especial já está cheia, e que por isso Cris tem de ir para uma escola para crianças com atrasos mentais.
No último dia de férias, chega, pela terceira vez, uma carta do ministério, onde é dito novamente que, uma vez que os pais demoraram a conceder a autorização, Cris já não pode ir à escola durante o próximo ano (suspensão da obrigatoriedade escolar, de acordo com o artigo 14 do regulamento escolar).
– Estão malucos! – grita a mãe, e o pai bebe logo de enfiada três copos de aguardente. Depois atira o copo contra a parede, e Cris tem de varrer os vidros.
– A partir de hoje vão as duas para a segunda classe, para a Sr.ª Anders, e sentam-se uma ao lado da outra, percebido? – disse a mãe na manhã seguinte.
Cris e Nenna vão para o autocarro escolar enquanto a mãe se lança para a bicicleta e voa para a escola. Quer dizer das boas ao director.
Mas o director está doente. A substituí-lo está a Sra. Anders, que até fica tonta com tantas leis e parágrafos. Diz também que a situação em que Cris se encontra foi provocada pela mãe. O que é que tem contra a escola de ensino especial da vila vizinha? Só se ouve falar bem daquela escola. Sim, sim, os edifícios são bonitos, diz a Sr. Blattsch, mãe de Cris… Já lá foi de bicicleta.
A campainha toca.
– Tenho de ir para as aulas – diz a Sr.ª Anders, que ainda acompanha a Sr.ª Blattsch pelo corredor e depois se dirige para a sala de aula. E o que vê? Cris e Nenna sentadas ao lado uma da outra, como se fossem uma só.
A Sr.ª Anders vai a correr ao recreio, mas já não vê a Sr.ª Blattsch, que saiu dali à velocidade do vento.
– Que descarada! – vocifera a Sr.ª Anders. – Deixar-me assim uma prenda destas, como se a minha turma não estivesse já suficientemente cheia. Não pense ela que a vou deixar fazer o que quer! A Cris que pegue na sacola e que vá para casa. Se o autocarro já tiver partido, que vá a pé.
A Sr.ª Anders volta a correr para a sala mas vê os olhos claros de Cris e o medo bem no fundo deles, e resolve não dizer nada. Pelo meio-dia, dez minutos antes de tocar, senta-se à secretária e escreve:
Cara Sr.ª Blattsch
Daqui em diante, deixe ficar a Cris em casa, tal como determinado pelo ministério.
O que é que a Cris vai fazer, se tiver de ficar em casa? – pergunta uma voz. Uma voz tímida e baixa. A Sr.ª Anders parece conhecê-la, já a ouviu mais vezes… – Vai brincar com garrafas vazias de aguardente? E as pessoas da aldeia, o que dirão? “Uma palerma. É tão burra, que nem a querem na escola!” Mas porque é que estás a escrever? Não lhe basta já a carta do Ministério? Ainda tens tu de te fazer importante?
Nunca na vida! Quem é que pensa numa coisa dessas?
Eu!
Eu? Quem és tu?
Prefiro antes dizer-te quem não sou. Bem, não sou essa pessoa que aceita todas as ordens do ministério. Há muito, muito tempo, antes de te tornares uma funcionária do estado, também foste uma menina indefesa e insignificante como a Cris…
Eu fui como a Cris? Nunca, podes ter a certeza. Nunca!
Não precisas de ter medo que as crianças ouçam o que te digo. Para elas sou completamente invisível e inaudível. Claro que eras uma criança esperta, se não, não tinhas chegado a professora. Mas talvez te lembres ainda daquela pequena, a segunda a contar do fim, quando se tinham de colocar por ordem de tamanho. E nas aulas de ginástica tinham de se pôr por ordem…
…lembro-me, de facto…
E quem era aquela menina esquisita e fraquinha, que na escola não se atrevia a chegar junto do professor com o lápis da lousa partido…?
…também me lembro disso…
E quem é que era tão imbecil, desculpa a palavra, que não conseguia perceber que três mais três e quatro mais cinco pedem números determinados, e não uns algarismos quaisquer à escolha?...
Deixa-me rir! Era eu!
Era eu! Era eu! Era eu! Há tanto tempo que desejo que te lembres de mim e me chames pelo nome.
Oh, já está a tocar! Não posso dar à Cris a carta para entregar à mãe. Ainda não a acabei…
Rasga-a, por favor! Não é bom escrever cartas que não sirvam para o bem das crianças. Gostarias de ter levado uma carta dessas à tua mãe? Um professor não tem de ser só inteligente, garanto-te. A inteligência não chega. Também precisa de saber sentir o que sentia quando era criança…
* *
Olá! Hoje já é o quinto dia de aulas depois das férias, se não estou em erro.
Sabes o que é a imbecilidade? Fazes ideia do que é…
E tu, fazes?
Vou mostrar-te, presta atenção!
– Cris, ora lê o que está escrito no quadro.
…
– Vou ler-te em voz alta: mamã. Mmmmmaaaammmmãããã. Que sons é que ouves?
…
Pobre idiota! Tem a idiotice estampada na cara.
Ela pensa que vai apanhar já um estalo da mamã. Apaga a palavra mamã, Maria! Usa uma palavra de que todas as crianças gostam.
Sabes alguma?
Rir.
– Cris, olha. Vou apagar mamã e vou escrever uma palavra nova: rir. Tu gostas de rir, não gostas? Rrrrir. Que sons é que ouves?
…
– Vou escrever outra palavra: fazer. Fazer rir. Soa bem, não soa? Ora diz lá tu.
…
– Vou escrever outra palavra: desenhar. Também gostas de ddeeseenhnhaarrr! Ouves os sons?
Ergueu os cantos da boca dois milímetros. Isto não é um sucesso? Deixa-a desenhar.
– Agora podes fazer um desenho bonito, Cris.
Ainda me lembro de quando aprendi a ler. Quando pela primeira vez dei conta de que não só ouvia mas também via as letras das palavras. Fiquei tão feliz! Profundamente admirada com essa descoberta! Tive o sonho mais bonito de todos os meus muitos sonhos. O meu amigo Itze e eu navegávamos pelo céu num navio de nuvens e ouvíamo-las todas cantar… O que é que a Cris está a pintar? … Uma mesa, dois bancos por baixo, o risco da boca é redondo nas duas crianças; quer dizer que estão a rir. E também copiou uma palavra do quadro: rir. Como é que a Nenna aprendeu a ler?
Por acaso foi normalmente. Só que tomei mais cuidado no início, porque já sabia o que se passava em casa.
Tomar cuidado? Será que aprender a ler pode ser perigoso?
Se se perde a ligação, sim.
Se calhar a Cris também perdeu a ligação.
Com a Cris é mesmo falta de esperteza, acabaste agora de ver com os teus próprios olhos.
Talvez seja “ligação” e burrice. Quem está sempre a apanhar estalos facilmente apanha uma má ligação, mas será que também tem de apanhar a burrice da leitura? Deixa-a brincar debaixo da mesa com a Nenna ao jogo do “Vamos ouvir as letras”. Nenna gosta da Cris e a Cris da Nenna. Aprende-se bem com alguém de quem se gosta. Deixa-me falar com a Nenna.
* *
“A mãe diz-me que não devo gastar tanto papel, porque o papel custa dinheiro. A Nenna tirou um bloco do balcão da loja para mim. É publicidade, e nisso podemos pegar, diz a Nenna. Faço desenhos pequeninos. Hoje vamos brincar a uma coisa nova, disse a Nenna. Hoje sou o bichinho do ouvido. Quando esse bichinho limpa as orelhas a alguém, essa pessoa consegue ouvir as letras das palavras.”
– Limpopo, limpopo, limpopo-te as orelhas. Ouves o p em limppo?
– Sim, ouço o p em limppo.
– E a Sr.ª Anders é boa. Não precisas de ter medo dela. Ouves o m em mmedo?
– Sim, ouço o m em mmedo.
– Portanto, não precisas de ter medo nenhum da Sr.ª Anders. Se errares, ela não se vai rir de ti. E os outros meninos também não se riem de ti, porque isso não é justo. Só o Ergon é que às vezes se ri, porque ouve mal. Mas depois também ouve da Sr.ª Anders.
– Com o Pusback riam-se sempre muito.
– Mas isso já passou – diz Nenna. – E como tu fazes uns desenhos tão bonitos, agora vou desenhar-te como se faz um p. Agora já consegues as duas coisas: ouvir e desenhar o p. Vamos brincar a sério às escolinhas. Se ouvires o que eu ouço em ppino, se ouvires sem ajuda, então és uma menina esperta.
– Pino, pino, P! P! Eu sou esperta!
* *
Quando foi a última vez que te ocupaste dela? Há quatro ou há cinco dias?
Tenho trinta e duas crianças na turma sem contar com a Cris. – disse Maria Anders. – São trinta e duas crianças com as quais tenho de me ocupar, o que, por si só, já é muito trabalho e às vezes bem difícil de levar a cabo, acredita. Não me sinto responsável pela Cris. Não estudei idiotice.
Foi por isso que pedimos ajuda à Nenna.
Pedir ajuda? Mas que palavra tão forte para este caso. Permitimos que Cris viesse para a escola. Ela porta-se bem, não perturba as aulas. Faz sarrabiscos e desenha. Sempre está melhor aqui do que se estivesse sentada em casa. Faço mais do que o que me é autorizado pelo ministério.
Não poderias ocupar-te dela só mais um pouco?
Mas como? Eu faço perguntas, ela não responde. Torno a perguntar, ponho-lhe a resposta na boca, por assim dizer. Ela continua sem responder. Quantas vezes tenho de repetir isto? Eu tenho de ver resultados, se não, um professor também não se sente motivado. E também não quero perder o meu tempo.
Será que cada funcionário público tem de se esquecer do que sentiu em criança?
Andas constantemente a lembrar-mo.
A Cris já cá está há dez dias. Em dez dias ainda não te disse uma palavra, mas o lápis dela fala com o papel. Vai até lá e dá uma olhadela.
Não vejo nada de interesse nos gatafunhos dela.
A última vez que olhaste para eles foi há cinco dias. Por favor, vai até lá outra vez…
PINO PATO
Os cantos da boca de Cris estão virados para cima. Quase sorri. Aponta com o lápis primeiro para uma palavra, depois para a outra. Os lábios abrem uma fresta.
Quer dizer-te alguma coisa, Maria. Depressa, baixa-te para perceberes…
Cris fala tão baixinho que nem na mesa do lado a ouvem.
– Se trocar este por este – diz ela batendo primeiro no A, depois no I – fica pano.
Mas isso é óptimo! É mesmo bom! Ela percebeu como funciona…
Se eu não tivesse vivido isto, disse mais tarde Maria Anders, acharia a história impossível. Uma coisa impossível como esta é o melhor que pode acontecer a um professor. Não se consegue esquecer, pensa-se e volta-se a pensar. Uma pessoa nunca se cansa de reflectir nesta história, acho eu. Na altura, falei abertamente com a Cris e com a Nenna. Expliquei-lhes qual era o problema dela, mas que ia conseguir aprender. Todas as manhãs, eu estudava uns minutos com ela, e Nenna fazia o mesmo à tarde. Foi simplesmente espantoso como Cris conseguiu aprender. Passados poucos meses já conseguia ler sozinha textos desconhecidos. Então, peguei no telefone, contactei o ministério e informei que tinha agido contra as ordens, e expliquei porquê. Disse ainda que a Cris agora já sabia ler, que aprendera com a ajuda da irmã. Meio ano mais tarde, a colega voltou a vir fazer um teste de inteligência e redigiu uma carta onde escreveu: “Cris desenvolveu uma boa técnica de leitura mas não entende nada do que lê.” Bem, este é o problema da ligação. Quando Cris sente que está a ser controlada, não abre a boca. Nem mesmo hoje. E já está com Nenna no quinto ano.
Irmela Wendt
Jutta Modler (org.)
Brücken Bauen
Wien, Herder, 1987
segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009
Objectivos para o Teste - 5º ano
Grupo I
- Interpretar um excerto de um conto;
- Conhecer as Categorias da Narrativa: narrador, personagens, acção, tempo e espaço.
- Identificar recursos expressivos: comparação e enumeração.
Grupo II
Funcionamento da Língua:
- Conhecer a organização de um texto escrito: parágrafo, período e frase;
- Identificar as classes e subclasses de palavras:nomes, verbos*, adjectivos, determinantes;
- Classificar as palavras quanto à flexão;
- Classificar sintacticamente frases.
* Verbos (regulares/Irregulares; Transitivos e Intransitivos; Conjugações - 1ª; 2ª; 3ª))
Grupo III
Produção de um texto narrativo.
Objectivos para o teste - 9º ano
Grupo I
- Interpretar uma "cena" da obra Auto da Barca do Inferno;
- Identificar recursos estilísticos;
- Conhecer os tipos de cómico.
Grupo II
- Funcionamento da língua:
- Identificar as classes e subclasses de palavras;
- Classificar sintacticamente frases;
- Dividir e classificar de orações;
- Conjugar verbos (tempos simples e compostos; conjugação pronominal simples e reflexa;
- Conhecer os fenómenos fonéticos na evolução da língua;
- Identificar os registos de língua.
Grupo III
Expressão escrita.
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